domingo, 1 de julho de 2012

Coração Partido


"Ventricle E4", de Michelle Anderst
óleo sobre painel, 11x14



Num daqueles dias de inverno azul-celestíssimo, nos quais não há iminência qualquer de nuvens, dias cujo firmamento ergue-se como um infinito teto abobadado, ela prostrou-se na varanda, à porta dele, de unhas roídas pela ansiedade, de pernas trêmulas pela incerteza. Do tempo, perdera qualquer  noção: não era porta qualquer, mas uma transponível fenda na linearidade histórica, um meio obtuso de reverter o giro milenar do planeta. Atrás da camada fina de madeira, descortinava-se a dor de um passado recente, a violência do sonho interrompido, do frágil amor vítreo despedaçado.

Com a mão fraca, incerta, bateu a porta. Ele logo abriu-a, como se já esperasse a vinda - ou como se a esperasse. Dos olhos, não houve encontro; de cabeça baixa, uma franja arruivada de cabelos ralos tapando-lhe o rosto, pronunciou urgentemente:

- Eu sei que está com você. Preciso dele, por favor.

Os lábios dele curvaram-se num sorriso tímido, por detrás da barba muito espessa e emaranhada. Tinha um peito magricelo e hirsuto parcialmente à mostra numa regata alva porém encardida, os pés brutos descalços, os dedos sendo pressionados contra o chão de tacos encerados da sala de estar a ponto de suas dobras avermelharem-se. Passou os dedos pelos cabelos ondulados, os olhos azulados fixos nela, e disse com a voz grave:

- Está tão linda. Venha, entre. Estou passando café.

Encheu o pulmão de ar, como prestes a pular num mar revoltoso em ressaca. Adentrou a sala.

Encontrava-se tudo da forma que havia visto da última vez em que estivera ali. Salvo uma luz forte do sol que se projetava exatamente na direção da janela aberta, banhando toda a extensão do pequeno cômodo em ouro maciço, a disposição dos móveis velhos, do sofá com forro xadrez, da mesa de madeira-de-lei marcada de cicatrizes e arranhões poderiam constituir uma foto em tom de sépia da vida que compartilharam tão docemente. A luz do sol revelava o ballet invísivel das partículas de poeira enquanto ela cruzou a sala para alcançar a prateleira de livros no extremo oposto, tão imutável quanto todo o resto. Entre os tantos Barthes e Foucault, lá estava, intacto, o volume de Clarice Lispector que havia introduzido em segredo, silenciosa, dias antes da partida. Pegou o livro nas mãos e viu a dedicatória que, possivelmente, nunca fora lida: "Porque precisas, meu amado, urgentemente, duma pincelada de poesia nestes teus dias tristes".

Retornou da cozinha, duas canecas nas mãos, dois olhos ávidos refletindo a explosão de luz crepuscular. Sentaram-se no sofá, próximo da janela, próximos um do outro, ainda que distantes fossem seus pensamentos e atos, como que se vivessem em épocas distintas e um colapso temporal tivesse permitido tal encontro. O sol vespertino incindiu sobre os cabelos dela e uma chama de beleza rubra pode ser ouvida crepitando no silêncio inócuo da sala de estar. Ele bebericou o café muito quente, o vapor serpenteando em direção das suas narinas dilatadas, nas quais o cheiro da bebida misturava-se com o odor fresco de pitanga que dela exalava. Disse qualquer coisa sem importância, qualquer bobagem ínfima que permeasse pelas frestas do muro de distanciamento erguido entre eles, ao que ela foi veementemente incisiva.


- Você sabe que não vim para ficar, não sabe?


- Dei a entender que penso o contrário?


- Tenho um outro alguém agora.


- Fico feliz por você. Como ele te trata?


Ela levantou os olhos tristes e deixou-se vê-lo, pela primeira vez. Eram os mesmos olhos aguçados, irrequietos, misteriosos, que costumavam pousar sobre ela, à luz da manhã, e questioná-la sobre a existência de Deus, sobre o ballet dos astros e as conspirações do homem moderno. Era tão ele que sentiu-se baqueada, perceptivelmente baqueada na voz falha que disse:


- Ele me proporciona o que você nunca conseguiu: paz. Respostas, não dúvida; doação, não recebimento apenas.


- Você não merece nada além disso - concluiu sobriamente.


- Ele sabe, contudo, que estou incompleta - ela admitiu, por fim. - Vê-me tão nitidamente que o nota, embora esforce-se para não demonstrar que o sabe. É por isso que vim - a voz era grave quando ela inclinou-se em sua direção, deixando a caneca com café de lado e tomando-lhe a mão bruta entre as suas. - Preciso que você me devolva.


Passaram-se instantes dum silêncio angustiantemente longo. Tomou-a pela mão e a guiou escadas acima, como se ela não conhecesse a casa, uma turista em território que era tão dela. Ele girou uma chave miúda na porta do fim do corredor e os olhos expressivos permitiram que ela entrasse. No pequenino quarto, cuja escuridão era cortada apenas pelo reflexo iridescente que provinha dum basculante oval, ela viu uma caixa de papelão na quina empoeirada. Seu coração pulsou um tanto mais forte. Da caixa, pôde-se ouvir uma pulsação abafada, sentida, que se encaixava em uníssono com a melodia proveniente do seu músculo cardíaco. As batidas tornavam-se mais fortes a cada passo que dava naquela direção, mais entrelaçadas, espiralando em música ansiosa e rápida, até que as mãos ágeis abriram as abas da caixa e revelaram seu conteúdo.


A música cessou. Uma luz forte, violácea, tomou conta de tudo.


*


Era verão. Os dois, deitados no gramado do parque municipal, as pernas infinitamente entrelaçadas, os corpos úmidos de suor, mantinham os olhos fechados. O sol bruto de um fevereiro longo batia violentamente contra os rostos, e eles brincavam de assimilar os desenhos que aquela luz prensava em suas pálpebras cerradas.

"Então, o que você está vendo?", ele perguntou, mergulhado na luz leitosa originada dos olhos fechados.


"Vejo você. Apenas você."


Ele, de súbito, abriu os olhos e se levantou. A brincadeira estava encerrada.


*


Era uma tarde de chuva, talvez de março, ou de junho, não se lembrava bem. Ela esperava ansiosamente a sua chegada, de vigília religiosa à janela embaçada, o vidro salpicado dos pinguinhos insistentes da chuva inesperada. Por entre as cortinas d'água, avistou-o, por fim, a passos despreocupados e deleitados. Saiu à calçada, numa correria pueril,  banhada da chuva torrencial, e o abraçou e beijou-lhe a boca como se não se vissem há anos.


(Fazia apenas 17 minutos que ele havia saído para comprar cigarros.)


*


Numa noite quente de novembro, os corpos ainda entumescidos, na nudez já desprovida da necessidade de lençóis, numa intimidade tão palpável, a explosão das palavras na boca saciada: "Eu te amo". 


Apaga-se a luz  do abajur. "Boa noite".


*


3:17 marcava o relógio na parede. Sentou-se ao lado dela no sofá xadrez e lhe enxugou as lágrimas com os dedos brutos. Era um dia de cinza londrino,      de céu-de-cimento no qual o vento fazia uma sacola plástica flutuar. Ele tragou o cigarro e, através da nuvem de fumaça liberada pelos seus lábios, viam-se olhos secos, imponentes, incorruptíveis. A decisão estava tomada e nada o faria voltar atrás.


"É para o seu bem", ele afirmava, batendo os pés descalços e impacientes no chão. "É só para o seu bem."


*


Quando apagou-se a luz, ela segurou a caixa contra o peito. Ele estava encostado no batente da porta, vislumbrando a emoção que irradiava dela na penumbra do quarto.

- Posso levá-lo? - ela questionou, enquanto as batidas de seu coração e da caixa sincronizavam-se novamente. Ele fez que não com a cabeça, de olhos complacentes. - Por que não? - as pupilas começavam a aguar.

- Você o deu para mim. Não é coisa que se tome de volta.

- Como hei de viver incompleta?

- Você encontrará um jeito. Logo, não lhe fará mais falta. Acostumar-se-á.

Ainda tinha a caixa friccionada contra o próprio peito, uma atitude urgente, desesperada. A cabeça nublada, cheia de questionamentos, procurava forma de burlar a imponência do homem que outrora amava.

- Onde está a minha caixa?

- Você não tem uma.

- Não?

- Amar é como morrer aos poucos. Exige coragem dar-se de forma tão completa a alguém. Sou um covarde, minha doce tulipa, e você sabe disso. Sua caixa está vazia por conta de minha covardia. E assim estarão todas as caixas das pessoas que se aproximarem de mim. Amar é morrer. Apenas morrer.

Finalmente, ela compreendeu. Preenchida de uma epifania fugaz, colocou a caixa nas trêmulas mãos dele, beijou-lhe suavemente o rosto barbado e disse, já à escada:

- Que seja morrer, portanto. Não deixa de ser a mais doce das mortes. Obrigado por tudo.

Nunca mais voltaram a se ver. Ela sequer soube que, alguns anos depois, absorto numa solidão permanente, vítima de uma depressão violenta, ele foi encontrado morto, no chão de tacos da sua sala, o peito estufado de um coração completo, tão inchado que transbordava pelas costelas.

Mas ela, quando foi visitada pela irrevogável dama obscura, já tinha os cabelos brancos feito nuvens e a pele abstida de qualquer traço de juventude. Quando abriram-lhe a gaiola de ossos, não encontraram nada: amou tão profundamente, durante toda a vida, que o coração voou, tal qual passarinho, para fazer morada noutros ninhos.

Um comentário:

Chris Fernandes disse...

Oi Rapha,

numa primeira leitura rápida, descompromissada, entendi que a caixa representa a doação total do amor: o coração que ama, que se entrega.

Acredito que textos podem ser dúbios e ficar a mercê da compreensão do leitor. Cada um interpreta a caixa de acordo com suas ausências, dores, sei lá.

Gostei do texto e não sei se vale a pena torná-lo tão explícito já que contém uma linguagem tão poética!

Não sou entendida de nada, apenas leitora e sua fã.

Quando gosto comento e se não gosto prefiro ficar na minha. A interpretação é algo muito singular.

Beijokas
Tia Ana