domingo, 29 de julho de 2012

O Ranzinza Urso-Cinza: A Profecia de Solstício


(nota do autor: os fatos deste conto acontecem, cronologicamente, antes daqueles apresentados no conto anterior, O Ranzinza Urso-Cinza: Hibernação)

Cinzento não gostava de muita coisa, era bem sabido. Não gostava da calmaria matinal, dos primeiros raios de sol despertando-o tão cedo; tampouco gostava das tardes, dos ruídos estridentes da floresta em movimento frenético. Gostava – se assim podia-se dizer –, um tantinho de nada, das noites e da madrugada: hora em que todos estavam dormindo e não precisava preocupar-se em ser sociável, ou prestativo ou, pior ainda, amável. Não sabia ser amável, era essa a verdade. Se tentava sorrir, as mandíbulas abriam-se num emaranhado de dentes disformes e assustadores; se a tentativa era fazer carinho, as unhas grossas e pontudas, quase navalhas afiadas, acabavam por ferir a pele do pobre felizardo, cobaia dos experimentos sentimentais daquele ranzinza urso-cinza. 

Cinzento não gostava de muita coisa, mas havia duas coisas de que gostava – e muito: de hibernar por todo o inverno; e de nadar no Grande Lago durante os dias quentes de verão. 

Era apenas uma enorme bola de pelo boiando nas águas mansas, plácidas, sozinho e silenciosamente. Por ora, mergulhava lá no fundo e mantinha-se submerso pelo longo tempo que seus fortes pulmões permitiam. Podia ver todo o fundo do lago através das cortinas transparentes, reverberando vida aquática, os peixinhos a nadar em grandes cardumes iridescentes, as algas bailando para lá e para cá, incansáveis, como se o movimento da água fosse a melodia de um grande e improvisado balé. 

Quando voltou à superfície, encharcado e contente, avistou um pontinho preto num dos altos galhos de bordo – e percebeu, instantaneamente, que seu agradável dia de natação estava prestes a ser arruinado. O mínimo pontinho abriu asas curtas de penas negras como a noite e, num voo rasante, chamou agourentamente: 

- Cinzentu-uh-uh – e pousou num dos galhos mais baixos, bem próximo do urso. 

Tratava-se da Coruja Corina, com seus olhos enormes e arregalados que vigiavam toda a floresta, com suas penas pretas que lhe davam um aspecto de luto contínuo, com seu bico ágil e sua vozinha esganiçada, sempre pronta para espalhar o último mexerico ou briga, separação e acontecimento entre os animais da floresta. Seu gosto pela fofoca era tão grande que, diferente de toda a sua família-coruja, que dormia durante o dia todo e mantinha-se acordada pela madrugada afora, Corina tinha hábitos extremamente opostos, com medo de perder qualquer burburinho. Acordava bem cedinho, logo quando os primeiros raios de sol vinham pintando o céu azul-cobalto, e só entrava para casa quando todos já se punham a dormir. 

Cinzento bem que tentou mergulhar novamente para evitar a coruja, mas ela foi mais rápida e o berrou: 

- Cinzentu-uh, meu caro amigo urso, você não vai acreditar no que aconteceu-uh-uh

Cinzento resmungou alto, aborrecido, retirando-se do lago. Sacudiu o corpanzil com força para tirar o excesso de água acumulada em seu pelo e se pôs a andar pela floresta, ignorando a altiva ave. Ela sentiu-se muito afrontada com aquele dar de costas mal-educado e, planando baixinho logo atrás dele, vinha tagarelando ininterruptamente: 

- Eu sei que você está chateado desde que noticiei jornalisticamente sua dieta à base de frutas vermelhas porque estava se achando gordo, Cinzentu-uuh – argumentou Corina, de ar sério -, mas aconteceu uma coisa incrível que você precisa ve--PARADO AÍ! – gritou, de repente, e seu berro agudo retumbou em toda a extensão da floresta. 

- QUE FOI? – Cinzento bravejou, congelado, o coração palpitando com força. 

Corina pousou em seu ombro, piscando os enormes olhos diversas vezes, um tique que irritava Cinzento deveras. 

- Olhe na direção da clareira. O que vês, caro urso-balofo-uh-uh

Cinzento apertou os olhos na direção indicada e descreveu prontamente, doido para se livrar da coruja: 

- Nada demais, apenas o Danilo pendurado numa árvore pelud-- ÁRVORE PELUDA? – repetiu, sobressaltado. – Mas que diabos é aquilo? 

Corina riu satisfeita, cheia de si com o espanto do urso. Cinzento se aproximou lentamente da cena estranha, percebendo que Danilo não estava sobre galhos amadeirados, mas sobre uma galhada bruta e ossuda; o tronco da árvore não era nada senão quatro pernas magricelas, com cascos afundados na terra, como se fizessem parte da paisagem; e notou também que os buracos na madeira não eram morada de pequenos roedores ou de passarinhos, mas sim duas grandes narinas que puxavam grande quantidade de ar. 

- CINCENTO! – o esquilo Danilo gritou, demonstrando o alívio de ver o amigo urso ali. – Tragédia, Cincento! A fida nunca mais será a mesma: o Alce Alceu tá firando árfore

E foi só quando se aproximou de vez que Cinzento pôde ver os dois olhos confusos e sutilmente estrábicos do alce a lhe encarar. Foi acometido de uma grande vontade de correr dali, para muito longe, onde tudo que existisse era neve e um cobertor. Mas era tarde: já estava preso na teia de presepadas dos seus amigos aloprados. 

- Eu disse a ele que era urgente, mas ele não me acreditou-uh-uuh – Corina pontuou, com certo tom de desdém. – Ele me trata dessa forma porque noticiei jornalisticamente que ele é o terceiro pior urso-pescador do continente, só por isso-uhh

- O que você tá fazendo aí parado, Alceu? – Cinzento questionou, ignorando a coruja (e controlando um demasiado forte impulso de torcer-lhe o pescocinho). 

- Árvores ficam paradas – ele apurou, quase sem mover os lábios, como se fosse um ventríloquo profissional. 

- Você não é uma árvore. 

- Ele tem galhos, Cincento – contribuiu um Danilo extremamente excitado com toda aquela movimentação. – Que mais ele poderia ser com estes enormes galhos? 

- Um alce – sintetizou, cínico, Cinzento. – Agora parem com isso e vão caçar o que fazer. 

- Eu entrei em contato com as corujas-repórteres de outras florestas e constatei que este é o primeiro caso de um alce-árvore – Corina disse, voando na direção de Alceu, como se para analisar o caso mais de perto. – Vai ser um babado quando eu contar isso na convenção das corujas deste ano-uuh-uuh

Os olhos de Cinzento estavam avermelhados – de ódio, de irritação ou dos dois. Respirou fundo, como se o oxigênio tivesse pequenas partículas de paciência extra para ajudá-lo a aturar aquela situação. Danilo rodopiava freneticamente em torno do corpanzil bruto do Alce, dizendo: 

- Alceu, quando seus galhos já estiferem bem altos, posso fir morar neles? Imagina só a fisão panorâmica do lago que terá daqui! 

- Contanto que você pague a taxa de condomínio – o alce negociou, de lábios estáticos. 

- Vocês atingiram o ápice da loucura – Cincento bramiu, brabíssimo, pondo-se a andar para longe da clareira. 

Danilo seguiu-o de perto, enroscando-se nas patas grossas de Cinzento e subindo até o seu ombro. Cochichou ao ouvido do amigo urso, num tom tão baixinho que não era de seu feitio: 

- Cincento, focê sabe que dia é hoje? 

- Não. 

- Pois hoje é o dia que a bola de fogo chamuscante demora mais tempo para apagar. 

- Humm – Cinzento sibilou, irritado, sem parar de andar. 

- E focê sabe, Cincento, o que as inscrições sagradas da Alcateia Ancestral dicem sobre hoje? 

- Não me diga que agora, além de tudo, também deu para esoterismo – Cinzento zombou, olhando o pequenino esquilo com o canto dos olhos. 

- Cincento, é sério! – ele continuou aos sussurros. – Está lá, nas paredes da caferna



“Eis que, ao maior de todos os solstícios, 

A mais estranha das árvores florescerá 

E nova será a vida por estes sítios 

Quando, às cinzas, ela retornará.” 



- Solstício? Que é isso? – perguntou Cinzento, incrédulo. 

- Não faço ideia, mas os Lobos Anciãos sabiam o que diciam

As bochechas de Cinzento se inflaram, feito balões de gás hélio, e, com um sopro forte e salivado, ele derrubou Danilo do seu ombro. 

- Chega de maluquices por hoje. Tenho uma soneca para tirar – disse ele, sumindo, lentamente, na relva esverdeada. 



Havia vezes que um bando de animais estranhos invadia a floresta. Vinham eles, vestidos com suas roupas engraçadas, em caixotes de ferro com rodas, e montavam tocas temporárias com agilidade e destreza; por que vinham, dependia do bando: alguns pareciam estar ali apenas por diversão, enquanto outros aparentavam vir para desafiar a paz, com suas garruchas carregadas e suas miras certeiras – ao que a população da floresta já sabia que precisaria passar uma temporada longe, escondida por outras bandas. Mas, todos os bandos daqueles estranhos animais bípedes tinham uma característica em comum: vinham para a floresta como se fossem donos do lugar. 

E, quando iam embora, deixavam para trás toda a porcaria que consumiram jogada nos bosques, boiando no lago, poluindo a mata tão verde. Os bichos da floresta, então, se juntavam para remover todo aquele lixo de suas casas. 

Num desses mutirões de limpeza, Danilo perguntou ao Mico Michelangelo se aqueles bichos eram parentes seus, devido a semelhanças em suas aparências, ao que Michelangelo foi muito enfático em dizer, aborrecido, que não tinha parentesco algum com bichos tão primitivos. 

Na maioria das vezes, os bichos da floresta eram muito bem-sucedidos na limpeza de seu lar. Mas, próximo à clareira, uma latinha de cerveja vazia fora esquecida, aparentemente inofensiva. 

Latinha essa que refletiu os raios de sol daquele dia quente de verão durante toda a tarde, em direção às folhas secas que se acumulavam num dos cantos da clareira. 

Raios esses que, de tão quentes e fortes, aqueceram tanto as folhas ao ponto de fazê-las entrar em combustão. 

Folhas essas que, em pouco tempo, iniciaram um enorme incêndio na floresta. 


Cinzento estava estirado numa confortável moita, de patas arreganhadas, a barrigona voltada para o céu e a bocarra libertando um ronco alto que parecia um trovão. Ainda era dia, embora já fizesse horas que Cinzento encontrava-se em sono profundo, ao frescor duma sombra. O entardecer era de um rubor intenso, embaçado por uma fumaça espessa e salpicado de fuligem, uma paisagem dantesca de caos e calor. 

Corina teve dificuldades para acordar o urso dorminhoco. Beliscou com o bico afiado a gordurinha sobressalente de sua barriga até que ele abriu os olhos, desnorteado, a perguntar: 

- Onde é o churrasco? 

- Não é churrasco, Cinzentuh-uh – ela corrigiu, voando nervosamente em torno da cabeça dele, aos berros. – INCÊNDIO NA CLAREIRA, precisamos de você. 

Não foi preciso explicar duas vezes: no momento seguinte, Cinzento corria, nas quatro patas, pela trilha na floresta, a respiração ofegante pelo esforço de mover aquele corpo enorme com tanta agilidade. Só pensava em Alceu, parado na clareira, com aquela estúpida ideia de que se transformara em uma árvore. Corina voava ao lado dele, batendo as asas com força e narrando tudo que havia ocorrido até então. O calor vespertino foi ficando cada vez mais intenso, as cores da floresta expressivamente misturadas entre o verde-musgo e a vermelhidão flamejante, até que Cinzento alcançou a clareira, agora um verdadeiro caldeirão fervente, um vulcão em erupção no seio da floresta. 

Toda a população da mata estava ali, em corrida ao Grande Lago, e trazendo, como podia, água para tentar apagar a gigantesca fogueira: Danilo enchia a boca com água mas, graças aos enormes dentões, não conseguia fechá-la e, consequentemente, a água escorria pelos lábios e sua contribuição como bombeiro era a própria saliva; uma passarada voava com pressa, organizada, cada uma das aves segurando a ponta de uma folha enorme, que mergulhavam no lago e, com dificuldade, levavam de volta até o incêndio, atingindo o fogo por cima; e os macacos, liderados pelo Mico Michelangelo, talharam horizontalmente pedaços de bambu e os utilizaram como baldes, numa engenhosa demonstração de trabalho. 

Cinzento não perdeu tempo em juntar-se aos amigos para o difícil ofício de extinguir o fogo. Tentou olhar por entre as chamas crepitantes, avistar algum sinal de Alceu, mas as cortinas de fogo eram altas e imponentes. Contudo, depois de muitas idas e vindas, do lago à clareira, com a bocarra cheia d’água, foram as esperanças de Cinzento que se extinguiram. Ele sentou-se à beira do lago, triste, sentindo-se muito culpado por não ter insistido para que Alceu deixasse aquela ideia maluca de lado. Os olhos aguados, tristonhos, miraram a profundidade serena do lago e, subitamente, avistaram galhos presos na margem posterior. Focou os olhos com destreza e afinco e percebeu que aqueles galhos tinham, entre eles, um par de olhos estrábicos que... 

- Alceu? ALCEU, É VOCÊ? 

- Glup Glup Glup... 

- Eu não consigo entender-te se não colocar a boca para fora d’água, seu besta! – Cinzento foi tomado por um contentamento do tamanho de sua barriga. – O que você está fazendo aí, Alceu? Pensamos que já tivesse se transformado em cinzas! 

O alce respondeu, com seus lábios ventríloquos: 

- É que, como estava com dificuldade de criar raízes lá, pensei que eu pudesse ser, na verdade, uma planta aquática. 

Cinzento sequer retorquiu; com a pata dianteira, tocou amavelmente a cabeça do amigo, feliz de vê-lo bem. Descobriu que podia, sim, ser amável e que, embora os amigos deixassem-no louco com suas maluquices, sua vida não teria graça alguma sem eles. 

Foi quando, milagrosamente, uma chuva torrencial começou a cair sobre toda a floresta. O brabo fogo amansou-se diante do poder da água e, em poucos minutos, tudo o que restava na clareira era uma fumaça plúmbea que descoloria o céu de verão. 

O dia longo, finalmente, terminava. Cinzento, cansado, disse: 

- Vou avisar à Corina para noticiar jornalisticamente que você está bem, Alceu. 

E surpreendeu-se ao ver que, na ponta da galhada do alce, uma pequena folhinha verdejante florescia timidamente. 

- Que você está olhando, Cinzento? – Alceu perguntou, intrigado. 

- Nada, amigo. Nada não.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Fael e o Cão

Entrava ele na cozinha novamente, as mãos suadas entrelaçadas nas costas, os olhinhos cor-de-oliva misteriosos e complacentes. Fitando-o com o canto dos olhos, a mãe incrementava o conteúdo de uma das panelas sobre o fogão a lenha, que aromatizava a casa com o cheiro de janta fresca. Ele já dava meia volta para se retirar novamente à francesa quando ela impediu, de mãos na cintura e postura severa:

- O que você quer, Fael?

- Eu? - surpreendeu-se, parando de súbito. Balançou-se para frente e para trás nas canelinhas finas, de mãos no bolso. - Nada, mãe. Quero nada. Nadinha.

Ela lançou um olhar descompromissado pelo basculante da cozinha, avistando o portão da frente de casa. Seu cenho franziu-se, as sobrancelhas juntaram-se, e ela ralhou, gesticulando com uma colher-de-pau na mão:

- Olha, Fael, se você passar com aquilo para o lado de cá do portão, juro que boto você e ele para correr a chineladas. Você ouviu bem?

- Mas mãããe... - Fael ainda tentou argumentar. Era, todavia, inútil, e logo percebeu, diante da carranca dela, que o mais prudente era correr para fora dali.

Ele esperava comportadamente sentado ao portão, silencioso, calmo como o entardecer que coloria o domingo de amarelo pálido. Mas quando Fael, cabisbaixo, surgiu no quintal, ele pôs-se nas quatro patas, a língua para fora da boca, o rabo felpudo sacudindo no ar no genuíno contentamento de avistar o menino novamente. Fael abriu o portão e o cão, preto, enorme, adiantou-se em lamber-lhe o rosto, tomado de saudade - ou talvez de preocupação com a possibilidade de nunca mais ver o menino.

- Ei, Tobias, pare com isso, rapaz! - Fael tentava controlar as investidas do cão, que ziguezagueava entre suas pernas numa explosão de alegria. - Ela não permitiu que fiquemos aqui, Tobias.

O cão parou de súbito, como se realmente compreendesse a gravidade do que Fael narrava. Sentou-se, olhando para o rosto do menino, soltando um grunhido fino e pesaroso.

- Não, não pense isso da mamãe, Tobias. É uma boa mulher, no final das contas. Sentirei saudade dela. - Ajeitou a boina de camurça na cabeça, coçou o nariz sardento com a ponto do dedo e anunciou: - Vamos, já é hora, companheiro.

Ganharam as calçadas, Fael seguindo à frente, com as mãos no bolso do macacão xadrez, reflexivo, seguido bem de perto por Tobias, que farejava o chão arduamente, de orelhas eriçadas, talvez com medo de que o menino evaporasse e se encontrasse sozinho de novo. A cidade pairava num melancólico silêncio dominical, numa falta de movimento permeado apenas por três senhoras mexeriqueiras que cochichavam na praça, um menino que empinava sua pipa no céu muito azul e um casal de namorados que passeava de bicicleta na rua de pedras. Fael e Tobias passaram pela barbearia do Seu José, fechada, pelo armazém do Seu Juca, também fechado, e pela igreja, na qual o padre Frederico, à porta, acenou com simpatia para o menino. Era um dia propício a aventuras, pensava o menino, com um sorriso tímido nos lábios.

Mergulhada em fumaça e marasmo, numa quietude plácida e absoluta, a estação de trem efetivava a calmaria incomum daquela tarde. Fael dirigiu-se à bilheteria e, após pigarrear, pediu:

- Moço, eu gostaria de dois bilhetes, por favor.

O bilheteiro, que cochilava preguiçosamente no interior da cabina, precisou inclinar-se no banco para avistar quem perturbava seu sono. Um menino e seu cão sorriam-lhe no pátio ensolarado, e o primeiro esticou-se na pontinha dos pés para entregar-lhe algo.

- Eu não sei quanto custa os bilhetes, mas creio que este tanto de jujubas deve ser o suficiente, não é mesmo?

Tobias emitiu um latido como quem concorda com o que fora dito, mas o bilheteiro não teve a mesma opinião. Devolvendo as guloseimas, irado atrás do bigode espesso, resmungou:

- Eu estou trabalhando, moleque! Não tenho tempo para traquinagens.

- Mas moço, tem da jujuba amarela, que é a mais gostosa de todas... - tentou argumentar o menino.

- Chispa daqui, menino! Anda!

E, enquanto o bilheteiro voltava à sua soneca, Fael guardava as jujubas de volta no bolso, desolado. Sentou-se no chão da estação, ao lado de Tobias, acariciando-lhe o pescoço e ponderando:

- Não, Tobias, não há com o que se preocupar: assim que o trem chegar, eu falarei com o maquinista e ele deixará que viajemos com ele, você vai ver.

O trem, contudo, demorou a chegar. O vespertino e pálido sol ausentou-se e uma noite fresca configurou-se quando, exausto, o pequeno Fael adormeceu ali, sentado, desprotegido, um aventureiro à mercê de sua jornada. Ao zéfiro constante que acompanhava o transformar da luz do dia em escuridão, o menino tremia de frio, despreparado para encarar a etapa noturna de sua fuga. Mas Tobias sabia que cabia a ele cuidar de Fael. Tinha ciência de que o menino era, agora, a família que nunca tivera e que poderia oferecer toda sua fidelidade a ele, todo o amor que mantivera guardado enquanto vagava pelas ruas sozinho. Deitou-se, então, bem próximo de Fael, com seu focinho quase a encostar em seu rosto, com seus pelos negros e seu corpo rechonchudo a aquecer o corpinho magrelo do garoto.

A mãe, obviamente, logo soube que seu filho encontrava-se dormindo com um vira-lata sarnento na estação do trem. "Que tipo de mãe é essa, que deixa o filho solto pela cidade, dormindo na calçada, pelo amor de Deus?", ela ouvia comentarem, enquanto corria o mais rápido que podia para a estação.

- Fael, Fael, meu filho! - gritou ela, espantando o cão com o pé e tomando o filho nos braços. - Não assuste mais sua mãe desse jeito, menino!

Tobias acompanhou toda a movimentação de mãe e filho com olhos atentos e excitados. Sentou-se, muito aprumado, de focinho erguido, como que esperando uma medalha pelo zelo com o garoto. Mas não houve medalha. A mãe se afastava, com o garoto no colo, segurando-o com força, destinada a nunca mais correr o risco de perdê-lo. A aventura havia acabado. Lá se ia a única família que já tivera, a única companhia, o único que já se preocupara com ele. Tobias, parado à estação, chorou baixinho. De olhos rasos de lágrimas doídas, lá se ia Fael, nas garras insensíveis da mãe.

Subitamente, entretanto, olhou pro rosto molhado do filho, precariamente  iluminado por um poste que se erguia na estação. Parou. Lançou um olhar para trás.

- Qual o nome dele, filho?

- Tobias - Fael respondeu em meio a um soluço.

Ela virou-se, curvando o corpo e fazendo um sinal com a mão.

- Vem, Tobias. Vamos para casa.

E o cão, abanando o rabo violentamente, saltitante e feliz, seguiu sua nova família de perto, a caminho - pela primeira vez na vida - de uma casa.


The Homeless Dog, por DeViLtEcH
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Quando tive a ideia para esta postagem, achei que seria uma boa oportunidade para ajudar a divulgar pessoas e entidades que têm, como objetivo, ajudar e cuidar nos animais sem dono. Por isso, pedi aos amigos do facebook que me enviassem links e endereços nos quais os leitores do blog poderiam se informar sobre a doação de animais.


O que acho incrível é que vejo sempre várias publicações de animais mutilados e maltratados no facebook. Mas, quando a proposta é realmente ajudar, divulgar ideias que não esbarrem no sensacionalismo, a resposta das pessoas é praticamente nula.

Fica aqui, portanto,  os links que me enviaram. Caso alguém mais tenha o contato de instituições preocupadas com a causa e queira que eu inclua na lista, entre em contato que adicionarei com muito prazer.

Gatos Campo de Santana:

Corações sem Dono:

Clube dos Vira-Latas:

Clube da Patinha:

Confraria Miados e Latidos:

domingo, 1 de julho de 2012

Coração Partido


"Ventricle E4", de Michelle Anderst
óleo sobre painel, 11x14



Num daqueles dias de inverno azul-celestíssimo, nos quais não há iminência qualquer de nuvens, dias cujo firmamento ergue-se como um infinito teto abobadado, ela prostrou-se na varanda, à porta dele, de unhas roídas pela ansiedade, de pernas trêmulas pela incerteza. Do tempo, perdera qualquer  noção: não era porta qualquer, mas uma transponível fenda na linearidade histórica, um meio obtuso de reverter o giro milenar do planeta. Atrás da camada fina de madeira, descortinava-se a dor de um passado recente, a violência do sonho interrompido, do frágil amor vítreo despedaçado.

Com a mão fraca, incerta, bateu a porta. Ele logo abriu-a, como se já esperasse a vinda - ou como se a esperasse. Dos olhos, não houve encontro; de cabeça baixa, uma franja arruivada de cabelos ralos tapando-lhe o rosto, pronunciou urgentemente:

- Eu sei que está com você. Preciso dele, por favor.

Os lábios dele curvaram-se num sorriso tímido, por detrás da barba muito espessa e emaranhada. Tinha um peito magricelo e hirsuto parcialmente à mostra numa regata alva porém encardida, os pés brutos descalços, os dedos sendo pressionados contra o chão de tacos encerados da sala de estar a ponto de suas dobras avermelharem-se. Passou os dedos pelos cabelos ondulados, os olhos azulados fixos nela, e disse com a voz grave:

- Está tão linda. Venha, entre. Estou passando café.

Encheu o pulmão de ar, como prestes a pular num mar revoltoso em ressaca. Adentrou a sala.

Encontrava-se tudo da forma que havia visto da última vez em que estivera ali. Salvo uma luz forte do sol que se projetava exatamente na direção da janela aberta, banhando toda a extensão do pequeno cômodo em ouro maciço, a disposição dos móveis velhos, do sofá com forro xadrez, da mesa de madeira-de-lei marcada de cicatrizes e arranhões poderiam constituir uma foto em tom de sépia da vida que compartilharam tão docemente. A luz do sol revelava o ballet invísivel das partículas de poeira enquanto ela cruzou a sala para alcançar a prateleira de livros no extremo oposto, tão imutável quanto todo o resto. Entre os tantos Barthes e Foucault, lá estava, intacto, o volume de Clarice Lispector que havia introduzido em segredo, silenciosa, dias antes da partida. Pegou o livro nas mãos e viu a dedicatória que, possivelmente, nunca fora lida: "Porque precisas, meu amado, urgentemente, duma pincelada de poesia nestes teus dias tristes".

Retornou da cozinha, duas canecas nas mãos, dois olhos ávidos refletindo a explosão de luz crepuscular. Sentaram-se no sofá, próximo da janela, próximos um do outro, ainda que distantes fossem seus pensamentos e atos, como que se vivessem em épocas distintas e um colapso temporal tivesse permitido tal encontro. O sol vespertino incindiu sobre os cabelos dela e uma chama de beleza rubra pode ser ouvida crepitando no silêncio inócuo da sala de estar. Ele bebericou o café muito quente, o vapor serpenteando em direção das suas narinas dilatadas, nas quais o cheiro da bebida misturava-se com o odor fresco de pitanga que dela exalava. Disse qualquer coisa sem importância, qualquer bobagem ínfima que permeasse pelas frestas do muro de distanciamento erguido entre eles, ao que ela foi veementemente incisiva.


- Você sabe que não vim para ficar, não sabe?


- Dei a entender que penso o contrário?


- Tenho um outro alguém agora.


- Fico feliz por você. Como ele te trata?


Ela levantou os olhos tristes e deixou-se vê-lo, pela primeira vez. Eram os mesmos olhos aguçados, irrequietos, misteriosos, que costumavam pousar sobre ela, à luz da manhã, e questioná-la sobre a existência de Deus, sobre o ballet dos astros e as conspirações do homem moderno. Era tão ele que sentiu-se baqueada, perceptivelmente baqueada na voz falha que disse:


- Ele me proporciona o que você nunca conseguiu: paz. Respostas, não dúvida; doação, não recebimento apenas.


- Você não merece nada além disso - concluiu sobriamente.


- Ele sabe, contudo, que estou incompleta - ela admitiu, por fim. - Vê-me tão nitidamente que o nota, embora esforce-se para não demonstrar que o sabe. É por isso que vim - a voz era grave quando ela inclinou-se em sua direção, deixando a caneca com café de lado e tomando-lhe a mão bruta entre as suas. - Preciso que você me devolva.


Passaram-se instantes dum silêncio angustiantemente longo. Tomou-a pela mão e a guiou escadas acima, como se ela não conhecesse a casa, uma turista em território que era tão dela. Ele girou uma chave miúda na porta do fim do corredor e os olhos expressivos permitiram que ela entrasse. No pequenino quarto, cuja escuridão era cortada apenas pelo reflexo iridescente que provinha dum basculante oval, ela viu uma caixa de papelão na quina empoeirada. Seu coração pulsou um tanto mais forte. Da caixa, pôde-se ouvir uma pulsação abafada, sentida, que se encaixava em uníssono com a melodia proveniente do seu músculo cardíaco. As batidas tornavam-se mais fortes a cada passo que dava naquela direção, mais entrelaçadas, espiralando em música ansiosa e rápida, até que as mãos ágeis abriram as abas da caixa e revelaram seu conteúdo.


A música cessou. Uma luz forte, violácea, tomou conta de tudo.


*


Era verão. Os dois, deitados no gramado do parque municipal, as pernas infinitamente entrelaçadas, os corpos úmidos de suor, mantinham os olhos fechados. O sol bruto de um fevereiro longo batia violentamente contra os rostos, e eles brincavam de assimilar os desenhos que aquela luz prensava em suas pálpebras cerradas.

"Então, o que você está vendo?", ele perguntou, mergulhado na luz leitosa originada dos olhos fechados.


"Vejo você. Apenas você."


Ele, de súbito, abriu os olhos e se levantou. A brincadeira estava encerrada.


*


Era uma tarde de chuva, talvez de março, ou de junho, não se lembrava bem. Ela esperava ansiosamente a sua chegada, de vigília religiosa à janela embaçada, o vidro salpicado dos pinguinhos insistentes da chuva inesperada. Por entre as cortinas d'água, avistou-o, por fim, a passos despreocupados e deleitados. Saiu à calçada, numa correria pueril,  banhada da chuva torrencial, e o abraçou e beijou-lhe a boca como se não se vissem há anos.


(Fazia apenas 17 minutos que ele havia saído para comprar cigarros.)


*


Numa noite quente de novembro, os corpos ainda entumescidos, na nudez já desprovida da necessidade de lençóis, numa intimidade tão palpável, a explosão das palavras na boca saciada: "Eu te amo". 


Apaga-se a luz  do abajur. "Boa noite".


*


3:17 marcava o relógio na parede. Sentou-se ao lado dela no sofá xadrez e lhe enxugou as lágrimas com os dedos brutos. Era um dia de cinza londrino,      de céu-de-cimento no qual o vento fazia uma sacola plástica flutuar. Ele tragou o cigarro e, através da nuvem de fumaça liberada pelos seus lábios, viam-se olhos secos, imponentes, incorruptíveis. A decisão estava tomada e nada o faria voltar atrás.


"É para o seu bem", ele afirmava, batendo os pés descalços e impacientes no chão. "É só para o seu bem."


*


Quando apagou-se a luz, ela segurou a caixa contra o peito. Ele estava encostado no batente da porta, vislumbrando a emoção que irradiava dela na penumbra do quarto.

- Posso levá-lo? - ela questionou, enquanto as batidas de seu coração e da caixa sincronizavam-se novamente. Ele fez que não com a cabeça, de olhos complacentes. - Por que não? - as pupilas começavam a aguar.

- Você o deu para mim. Não é coisa que se tome de volta.

- Como hei de viver incompleta?

- Você encontrará um jeito. Logo, não lhe fará mais falta. Acostumar-se-á.

Ainda tinha a caixa friccionada contra o próprio peito, uma atitude urgente, desesperada. A cabeça nublada, cheia de questionamentos, procurava forma de burlar a imponência do homem que outrora amava.

- Onde está a minha caixa?

- Você não tem uma.

- Não?

- Amar é como morrer aos poucos. Exige coragem dar-se de forma tão completa a alguém. Sou um covarde, minha doce tulipa, e você sabe disso. Sua caixa está vazia por conta de minha covardia. E assim estarão todas as caixas das pessoas que se aproximarem de mim. Amar é morrer. Apenas morrer.

Finalmente, ela compreendeu. Preenchida de uma epifania fugaz, colocou a caixa nas trêmulas mãos dele, beijou-lhe suavemente o rosto barbado e disse, já à escada:

- Que seja morrer, portanto. Não deixa de ser a mais doce das mortes. Obrigado por tudo.

Nunca mais voltaram a se ver. Ela sequer soube que, alguns anos depois, absorto numa solidão permanente, vítima de uma depressão violenta, ele foi encontrado morto, no chão de tacos da sua sala, o peito estufado de um coração completo, tão inchado que transbordava pelas costelas.

Mas ela, quando foi visitada pela irrevogável dama obscura, já tinha os cabelos brancos feito nuvens e a pele abstida de qualquer traço de juventude. Quando abriram-lhe a gaiola de ossos, não encontraram nada: amou tão profundamente, durante toda a vida, que o coração voou, tal qual passarinho, para fazer morada noutros ninhos.