sábado, 29 de dezembro de 2012

O amor nos tempos do .mp3

No episódio anterior... 
Cecília gostaria de comprar o álbum de Simon & Garfunkel, mas não tem lá muito respeito pelos clássicos. Acaba entrando na loja de Heitor, um jovem defensor ferrenho dos discos, que toma o desaforo à dupla como a si mesmo. Mas Cecília tem um trunfo na manga: a fofura do seu enrugado cachorro Brandon, que lhe garante a compra.
Para ler o episódio anterior na íntegra, clique aqui. 




[episódio 2. minha boca estúpida]

San Vicente era um pequeno sopro de ar fresco no coração frio de concreto da metrópole, um pequeno bairro charmoso que mantinha algumas características de tempos idos, como os sobradinhos de telhado imperial, arquitetura colonial e ruazinhas íngremes, apertadas e de pedras. Paradoxalmente, tinha, também, num prédio imponente e comprido que ocupava um quarteirão inteiro, uma das melhores universidades de mídias digitais do estado, que atraía anualmente uma quantidade considerável de jovens moderninhos e descolados, que enchiam os bares pela noite numa boemia desmedida. Aquele era um dos motivos que havia trazido Cecília para San Vicente – a universidade, não a boemia. A menina começaria, em alguns dias, a cursar design ali, como havia acabado de contar para Heitor, em tom excitado. 

O Bossa Nova Café ficava a alguns metros da Esquina dos Discos, um aconchegante espacinho de tacos encerados e mesas rústicas no qual se ouvia, agora, a voz sussurrante de João Gilberto. No patamar superior, iluminado tenuamente com velas, Heitor e Cecília eram separados pelo notebook da garota, que incidia a luz de uma maçã nos olhos esverdeados do rapaz. Brandon, o pequeno e obeso pug, cochilava despreocupado, surpreendentemente, aos pés de Heitor. 

- Você nunca fez faculdade? – Cecília inquiriu, os olhos atentos na tela iluminada do computador. 

- É difícil conciliar estudo com os horários da loja. Às vezes, penso em contratar alguém para me auxiliar, mas não sei se as vendas na loja são suficientes para pagar um funcionário.

Heitor questionava-se se Cecília estava realmente interessada naquilo tudo ou se apenas tentava puxar assunto. Ela parecia entediada, o dedo ávido pelo touchpad do computador, e Heitor começou a achar que aquela tecnologia toda era como o muro de Berlim entre os dois. Mas ela parecia mais linda do que nunca, à luz bruxuleante das velas, os cabelos vermelhos escondendo-lhe parcialmente a face. Sentia-se pendurado ao limite do muro, observando em segredo a beleza tímida de Cecília, feito um adolescente descobrindo os ombros despidos da nova vizinha. Não se lembrava há quanto tempo não tinha um encontro e aquilo o perturbou. 



- Qual é sua arroba? – ela disse de repente, e Heitor desequilibrou-se e caiu do alto do muro. – Posso te dar follow? 

Ele franziu o cenho, abobado. Tom e Elis faziam um belo dueto ao fundo. 

- Quê? 

Ela levantou os olhos, como se um estranho qualquer acabasse de se sentar à sua mesa. Brandon ronronou baixinho de debaixo da mesa. Cecília notou, subitamente, que Heitor estava muito bonito com o rosto barbeado e os cabelos domesticados, os olhos de esmeralda encarando-a com interrogação. 

- Não tem Twitter

- Não senhora. 

- Facebook

- Não. 

- Tumblr? – um meneio de cabeça. – Pelo menos um e-mail? 

- Só o da loja – ele explicou em tom de escusa, quando a garçonete trazia os cafés. – Esquina dos discos arroba bol ponto com ponto bê erre. 

Cecília sorriu, não com zombaria, mas deliciada com o jeito distinto de Heitor – era, para ela, como descobrir outro mundo, diferente dos amigos e dos caras que havia conhecido até então. Ele sorriu também, enquanto adoçava o café, dando de ombros, demonstrando que nada daquilo era-lhe importante. Cecília tinha a mão posta sobre a mesa, os delicados dedos branquinhos em contraste contra a toalha avermelhada. Sentiu vontade de tocar-lhe a mão. Terminou de mexer o café, depositou a colherzinha de prata sobre o pires e, forçando acaso, fingindo casualidade, prostrou os dedos firmes sobre a mesa também. Tarde demais, todavia: os dedos dela já estavam de volta ao teclado do computador. 

- A Duda está me chamando no Face-chat. Um minuto, Heitor. 

Heitor desejou que ela não tivesse trazido aquele trabuco metálico. Havia tido dificuldade para conseguir finalmente marcar aquele encontro e, agora, não parecia estar sozinho com ela, mas acompanhado do mundo inteiro, que perscrutava curiosamente pela tela, feito uma das teletelas de 1984. Afogou a irritação na cafeína adocicada. 

- Afe – ela disse finalmente, ajeitando os óculos -, a Duda pedindo para eu upar o álbum do John Mayer no blog. O link quebrou. 

- Hum – Heitor murmurou diante de todo aquele aramaico. – Você tem um blog. 

- Sim. De downloads – explicou ela, de olhos na tela, como que imbuída em trabalho realmente importante. – Temos um bom número de acessos diários, sabia? 

- De download de discos? – a voz de Heitor começava a embargar. 

- Isso. Ás vezes conseguimos até álbuns que nem foram lançados – gabou-se Cecília, lembrando-se do café que exalava a seu lado e bebericando um gole. – A Duda é ótima com isso. 

- Você só pode estar me zoando, né. 

- Por quê? 

E quando Cecília abdicou da tela para olhar Heitor, encontrou um par de olhos fuzilantes afundados num rosto vulcânico. Só então notou que havia falado mais do que devia. Ele já alcançava a carteira no bolso de trás e jogava alguns reais sobre a mesa, pondo-se de pé. 

- Onde você vai? Acalme-se, Heitor. 

- Isso tudo é um puta engano. Não tem como dar certo. Vamos ficar cada um em seu mundo, tudo bem? 

- Mas que diabos! Que obsessão é essa com essa loja? Você acha que ninguém tem direito de fazer o que bem entender? – Cecília bravejou, irritada. 

Heitor apoiou-se à mesa, num movimento violento o suficiente para despertar Brandon, que se espreguiçou debaixo da mesa. 

- Meu pai me deixou essa loja. Foi ele que me ensinou o amor pelos discos e pela música e o respeito que é preciso dar a eles. – Entre os dentes, completou: - Você tem, sim, o direito de fazer o que bem entender, contanto que o faça longe de mim. 

Heitor desceu as escadas de madeira, os passos abrutalhados, sob o olhar atordoado do pequeno Brandon – e sob os olhos chuvosos de Cecília. O servidor terminava de fazer o upload da terceira faixa do disco, “My stupid mouth”


Com os olhos sem vidro, Cecília viu apenas um borrão sentado à cama, ao seu lado, olhando-a minuciosamente. Era cedo e os raios de sol enfiavam-se pelas frestas da cortina de estrelas, desenhando-se pelas paredes recém-pintadas do quarto, que reproduziam as ondulações azuis de um dos autorretratos de Van Gogh

- Acordou? – o borrão perguntou, cutucando a barriga despida de Cecília. – Anda, conte-me tudo sobre o encontro com o “disqueiro”. 

Cecília envidraçou as pupilas e o borrão metamorfoseou-se em uma moça alta e despenteada, com tatuagens cobrindo-lhe toda a extensão do antebraço. 

- Porra, Duda. É sábado, me deixa dormir. 

- Ih, pelo mau-humor, tem gente aí que não transou na noite passada – Duda disse, um sorrindo de dentes encavalados à mostra 

- O cara é um lunático – Cecília começou, afofando o travesseiro e virando-se para a amiga. – Deixou-me sozinho no café por conta do Música na Faixa

- Você contou para ele do blog? – Duda admirou-se, coçando os cabelos crespos. – Nossa, mas você é burra! É como sair com um vegetariano e contar para ele que você tem um açougue. 

- Não enche. O Heitor leva tudo a proporções exageradas. – Cecília deu-se conta de que faltava algo naquela cama. – Cadê o Brandon? 

Berrou pelo nome do cachorro e, estranhamente, ele não surgiu, correndo com as patinhas curtas num esforço danado de mover o corpo roliço, como sempre fazia. Cecília levantou-se de chofre e encontrou a porta da frente aberta: Duda tinha levado o lixo para baixo e esquecido de fechar. 

Desceu as escadas correndo, pulando de dois em dois degraus, não antes de xingar meia dúzia de palavrões cabeludos com a companheira de quarto. Correu pelas calçadas, procurando o cão, com o coração martelando forte dentro das costelas, esbarrando inevitavelmente nos ombros dos transeuntes – “Que diabos vocês estão fazendo acordados tão cedo? É sábado!” –, sentindo-se por um instante no vídeo de “Bittersweet Simphony” do Verve. Ele não podia ter ido muito longe: era obeso demais para ter uma fuga bem sucedida, além de ser um cão demasiadamente caseiro para saber como se comportar nas ruas. Ele não podia ter ido muito longe, fato que se comprovou quando a sua rua encontrou-se com a rua principal e, numa olhadela para dentro da Esquina dos Discos, avistou Heitor acariciando a cabeça de seu cão.


- BRANDON! – ela berrou ao adentrar a loja, recebendo lambidas generosas na face remelenta. 

- Trajes interessantes, senhorita – Heitor ironizou e, só então, Cecília deu conta de que vestia sua microblusa de dormir com os dizeres “Dad’s Virgin”. 

- Como meu cachorro veio parar na sua loja, pode explicar-me? 

Heitor coçou os olhos, na tentativa frustrada de desviar a atenção das letras na blusa de Cecília. 

- Você que devia explicar. Quando vim abrir a loja, ele já estava à porta, esperando. 

Cecília bufou alto com a simples ideia de seu cachorro aderindo afeição por aquele mal-educado esquentadinho. 

- Isso não muda nada do que aconteceu ontem, viu? Você foi muito grosseiro. 

- Não, não muda nada – Heitor adicionou, posicionando-se atrás do balcão e trocando o lado do disco que tocava . E quando a menina se retirava da loja, embravecida, ele disse: - A gente se vê, Brandon! 

E o cão, nos braços da dona, como quem assente, grunhiu baixinho.


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As ilustrações para esta postagem foram feitas por Daniel Thurler. O sob o boné agradece a colaboração e fica muito feliz de contar com seus lindos desenhos. (:

sábado, 15 de dezembro de 2012

A viagem das Letras

"Eu já estou com o pé nessa estrada
Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes amanhã."

- Milton e Lô Borges, Clube da Esquina



Olhando para trás agora, daqui, tão distante e, ao mesmo tempo, tão perto, parece que esses últimos quatro anos foram uma longa e surpreendente viagem. Sinto como se naquele dia de março de 2009, confusos e tímidos, sem saber que rumo tomar - seja pelos corredores do prédio ou em nossas próprias vidas e carreiras - preparávamos, sem ter qualquer ciência, para a mais incrível jornada de nossas vidas, com a coragem de seguir em frente mesmo sem saber o itinerário. Naquele dia de março, acreditem, comprávamos as passagens para a surpreendente viagem das Letras.

Não foi uma viagem fácil - nós, aqui neste palco, com um sentimento de sobrevivência aflorado, sabemos muito bem disso. Vimos muitos dos nossos companheiros descer do ônibus e se despedir, porque aquela estrada não era para eles. Acenávamos, às vezes com lágrimas nos olhos, mas sabíamos que a viagem precisava continuar. Para outros amigos, cuja viagem parecia apropriada, mas, por algum motivo, sentiam urgência de desistir dela, dissuadimo-los com palavras de encorajamento - talvez porque não queríamos mais dizer adeus a ninguém.

E que recompensa tiveram aqueles bravos o suficiente para se aventurar até o fim: navegamos nos mares da língua portuguesa com a capitã Lúcia Ramineli, que acomodou em seu barquinho todos esses marujos inexperientes e nos levou a salvo por entre os maremotos de análise sintática; caminhamos pela Grécia Antiga com Simone Salomão, aprendemos tanta coisa sobre Literatura que nossas malas ficaram abarrotadas de história e conhecimento; Derrapamos nas curvas acentuadas da Línguística de Saussure e Chomsky, mas tivemos Lívia Mastrângelo para tomar a direção do ônibus e nos guiar sem grandes acidentes; e, quando foi nossa vez de recontar todas as histórias maravilhosas que começávamos a compilar em nossa memória (afinal, tínhamos muita coisa para relatar dessa história para Daniele, não é mesmo?), o que faríamos sem Marília para apurar nossa coesão e coerência?

O que quero dizer é que, se chegamos um tanto desnorteados para essa viagem, só podemos agradecer todos estes "guias turísticos" que, por conhecer tão bem os caminhos da Língua Portugesa, puderam nos levar por eles com tanto amor e devoção - e, principalmente, ensinar-nos a admitir este mesmo amor que agora também habita na gente. A viagem não seria a mesma sem todos vocês, professores queridos e todos os funcionários da faculdade.

Constantemente, viajávamos em grupos menores, por áreas que não interessavam a todos. Era quando nós, o Povo de Inglês (como costumávamos nos chamar com um falso tom de sarcasmo, pura implicância) embarcávamos no trem da Literatura Inglesa com o maquinista Felipe, ou atravessávamos as pontes gramaticais da Língua Inglesa com Valéria; o Povo do Espanhol visitava a língua-prima do Português com Fernanda e Rosa, através das fronteiras e sotaques, enquanto o Povo de Literatura acampava nas histórias de nosso país e de Portugal com CristinaAna Maria.

Tais viagens, entretanto, não serviam para sedimentar o grupo, absolutamente. Era o que nos unia, na verdade, a ponto de, em momento qualquer que ninguém saberá ao certo, deixamos de ser um grupo de desconhecidos dentro de uma sala de aula para nos tornarmos companheiros, amigos, praticamente uma família em vários casos. Choramos juntos as lágrimas que eram de apenas um, rimos de todos e com todos, estudamos a dúvida de um como se fosse de todos. Esse talvez seja o mérito dessa viagem, o que nos fez ouvir tantas vezes elogios dos professores: essa preocupação com o outro, esse amor que adquirimos pelo grupo que somos e o orgulho de ser e estar nele. Do círculo acadêmico, que, tantas vezes, é arenoso e infrutífero, competitivo e egocêntrico,  fizemos uma floresta de afeição e respeito e, do conhecimento que cada um leva consigo daqui, sempre haverá uma partezinha que é o resultado dessa forma linda que arranjamos de aprender.

A viagem acaba aqui. O ônibus estaciona, e nós, com lágrimas nos olhos por uma última vez, sabemos que os rumos são distintos e que cada um tem a própria estrada para viajar agora. Sempre haverá, entretanto, essa estrada de letras à nossa frente, sumindo no horizonte e guardando novas aventuras. "Qualquer dia a gente se vê", como diz o Milton, em um ponto dessa estrada surpreendente que é a vida.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

(pequena nota de agradecimento)

"When I was lost in the darkness
Oh, thank you for your love."


Hoje faz um ano que eu te vi pela primeira vez. Éramos dois estranhos num habitat a que não pertencíamos, incomodados, como quando entra uma pedrinha no sapato e fica arranhando o calcanhar; era essa a sensação que estas festas causavam. Sob as luzes frenéticas, ricocheteando no salão vazio - a festa era um fracasso e havia, no máximo, umas vinte pessoas por ali -, diante da música alta e ruim, dei-me uma chance de te conhecer. Havia chamado minha atenção seu jeito distinto do que estava acostumado a encontrar nesses ambientes, seu jeito abobalhado de andar, a forma que a embriaguez fazia com que se apoiasse à parede, um quadro quase ingênuo e jocoso. Fez-me ter vontade de conhecê-lo, tudo isso. Ainda bem.

À época, havia cicatrizes rasas na minha pele que você não pôde ver na escuridão da farra. Tornava-me, subitamente, indiferente às sensações que outro ser podia causar em mim - logo eu!, um inveterado amante das emoções enraizadas no relacionamento humano - e desacreditado de que aquelas cicatrizes podiam, ora ou outra, desvanecer de minha epiderme. Mas havia algo de diferente na forma com que andamos pelas ruas vazias àquela mesma noite - algo de esperançoso, de rejuvenescedor. Sentia que, talvez, seria aquela a cura para as minhas feridas. E descobri, algum tempo depois, que estava absolutamente certo.

Enquanto você me curava sem sequer saber, você foi trazendo de volta o sorriso para o meu rosto. Aprendi contigo um outro lado do amor, o lado tranquilo e calmo, sereno feito o mar depois de uma madrugada de ressaca. Reacendi a confiança em outrem, que havia se esfarelado diante dos meus olhos, porque você sempre me inspirou fidelidade e veracidade e sempre demonstrou que cuidaria bem dos meus sentimentos. Pude, finalmente, me entregar a alguém sem medo.

E, por isso tudo, obrigado. Por ter aceitado caminhar comigo, por ter conhecido cada parte da minha personalidade desequilibrada e ter permanecido aqui, por aturar minhas crises de mau-humor e, principalmente, obrigado pelo seu amor.  Não sei onde eu estaria agora se não fosse por você, a meu lado.

Mais que isso, obrigado por ter ido àquela fatídica festa e ter se recostado tão ~~sensualmente à parede (rs). Naquele momento, eu já sabia, era hora de ser, finalmente, feliz.


sábado, 10 de novembro de 2012

O Amor nos Tempos do .mp3


[episódio 1. mantenha o cliente satisfeito*]


Às quartas-feiras, era dia de rock clássico na Esquina dos Discos. Fazia um dia quente de março e o ventilador velho, articulando-se da esquerda para direita ininterruptamente, não dava conta de arejar o recinto, mesmo que fosse uma loja pequena - e, acrescento, muito charmosa - de poucas prateleiras nas quais abarrotavam-se vinis raros, novos ou usados. Era quarta-feira e Heitor, o jovem proprietário da loja, achou que um disco do Led Zeppelin era apropriado como trilha-sonora para o dia de marasmo que se estendia pelas calçadas e ruas da cidade. Não esperava clientes. Às quartas-feiras, restava-lhe ouvir rock clássico e tirar a poeira dos discos.

Aquela quarta-feira, entretanto, reservava surpresas: a porta de madeira, contrariando todas as probabilidades, subitamente foi aberta, com um rangido agudo e rústico. Heitor, feito o ventilador, girou o pescoço em direção à entrada. Uma jovem menina, de cabelos avermelhados e pele rósea, cruzava o corredor de discos, a cabeça baixa, os olhos atentamente fixados na tela do telefone celular. Heitor empertigou-se detrás do balcão, muito direito e apresentável, e, após uma pigarreada tímida, cumprimentou:




- Boa tarde. Posso ajudá-la?

A mocinha levantou os olhos, desinteressada, e ajeitou os óculos enormes com a ponta do indicador.

- Estou procurando um disco, mas não sei bem o nome dos artistas - começou ela, apoiando os cotovelos sobre o balcão e voltando a atenção para o telefone. - É uma dupla de que minha mãe gosta muito e me chamo Cecília por causa de uma das músicas deles. Algo da década de sessenta, ou setenta...

O coração de Heitor deu uma breve disparada; os olhos ganharam um verniz lustroso e cheio de orgulho - seria possível?

- Simon & Garfunkel, "Bridge Over Troubled Water", de 1970?

- Ai, é esse mesmo - confirmou Cecília, indiferente. - Você tem ele aí?

Heitor estava até um tanto emocionado: uma jovem tão bonita em sua loja e ainda fã de Simon & Garfunkel? Um sorriso bobo coloriu o canto dos seus lábios enquanto dirigia-se para a sessão de raridades da loja. Foi quando, vindo como se de muito longe, feito uma tempestade que se formava por trás das montanhas, ela acrescentou, zombeteira:

- Eles são tipo Zezé de Camargo e Luciano gringos, não é mesmo? Eu acho um saco, mas meu cachorro comeu um pedaço da capa do disco da minha mãe e já rodei dúzias de lojas de discos procurando outro para ela...

Heitor parou de chofre e um súbito enrubescer apoderou-se de sua palidez. Engoliu em seco, fazendo seu pomo-de-adão subir e descer abruptamente, e retornou para o balcão, com todos os músculos faciais retraídos, numa carranca medonha. A menina continuava a teclar no celular mas, diante o silêncio do atendente, levantou os olhos, parecendo, assim, notá-lo pela primeira vez: reparou os cabelos charmosamente despenteados de Heitor, seus olhos esverdeados, apertadinhos, quase duas fendas minúsculas, a barba emaranhada que lhe cobria a parte inferior do rosto e a expressão muito chateada que seus lábios crispados sugeriam.

- Não encontrou? - ela perguntou, ficando sem graça sem saber bem o porquê.

- Creio que um disco catalogado na sessão de raridades - Heitor disse com a voz muito sóbria, olhando para um ponto no fundo da loja, como se falasse sozinho - não deve ser vendido para qualquer uma. Tenha uma boa tarde.

Um silêncio constrangedor pôs-se entre os dois, enquanto o ventilador, barulhento como turbina de avião, continuava a baforar o ar quente do fim de verão. Gotinhas de suor salpicaram a testa de Cecília que, de tão nervosa, apertava os dedos do pé, dentro do allstar, contra o chão.

- Ofendi-te de alguma forma?

- Ofendeu toda a cultura pop, ouso dizer - Heitor respondeu, sarcástico e impaciente. - Com licença, preciso trabalhar.

Cecília abandonou a loja, resoluta e consternada, e Heitor não sentiu sequer ponta de arrependimento: tratava-se de um caso de blasfêmia contra a música, assim ele catalogou. Achou, todavia, que seria aquela a última vez em que veria a menina dos cabelos avermelhados, hipótese refutada em alguns poucos dias quando, através da reluzente vidraça, o rapaz notou dois olhinhos aguçados investigando o interior da loja. Heitor quis fingir irritação, mas não pôde mentir para si mesmo: havia qualquer coisa de excitação no fato de rever as sardas que ornamentavam o rosto suave da menina. Cecília cruzou a esquina de vidro e parou à porta da loja, quando ele pôde notar que, entre os dedos da mão direita, havia um coleira que terminava no pescoço de um cachorrinho rechonchudo, de olhos esbugalhados num focinho achatado e postura fadigada. Heitor adiantou-se para a entrada, a vassoura com que varria o chão à mão, bradando com animosidade:

- Esta é a fera que devorou a capa do disco de sua mãe? Você o trouxe para fazer um lanchinho na minha loja?

O cão, perturbado com os gritos de Heitor, como se notasse que, de alguma forma, era ele o assunto, arregalou ainda mais os olhos enormes. Mas Cecília apenas riu e apontou para o pescoço do cão.

- Que isso? - Heitor perguntou, desconfiado.

Contorceu-se e viu que era um pequeno bilhetinho enrolado, preso à gravata borboleta que o cão, muito extravagante, ostentava no pescoço. Temeu qualquer atitude feroz do devorador-de-capas-de-discos-clássicos quando abaixou-se para pegar o bilhete, mas o abobado cão, de língua de fora, babava despreocupadamente. Desenrolou o ínfimo papiro, no qual se lia, em caligrafia redonda e meticulosa:

"Olá, moço. Estou à procura de 'Brigde Over Troubled Water', 
porque comi a capa do disco da minha vovó e, depois disso, ela 
não deixa mais eu entrar em sua casa. Você pode me ajudar? 

Muito obrigado. 
Brandon"




Heitor tentou conter o riso, mas falhou diante da postura jocosa do obeso cão.

- Isso é jogo sujo! - ele disse, dirigindo-se à sessão de raridades da loja.

- Ai, obrigado, moço! - Cecília agradeceu com excitação.

- Chamo-me Heitor - apresentou-se, entregando-lhe o disco.

No fim das contas, todos saíram ganhando: Cecília e Brandon com o disco que devolveria a paz para sua família; e Heitor com o telefone da moça, anotado num cantinho de papel, com a promessa de ligar a qualquer hora destas para tomarem um café.

[continua...]
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As ilustrações para esta postagem foram feitas por Daniel Thurler. O sob o boné agradece a colaboração e fica muito feliz de contar com seus lindos desenhos. (:

*(tradução livre de "Keep the Custumer Satisfied", uma das faixas do "Bridge over troubled water")

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

A Cabana na Montanha

Ela tem o hábito incorrigível de dizer que nunca fomos felizes. Em suas vertiginosas elucubrações sobre meus maus-modos,  em suas crises abruptas de ciúme desenraizado, motivado por impressões errôneas, ou em suas crises constantes de mau-humor, ela tem o costume de desmerecer a vida que construímos juntos e afirmar a infelicidade a que foi imposta por meu amor mediano, morno e calmo. Diz-me que desejava tempestade quando, tudo que tem, é uma brisinha primaveril. E conclui, enrubescida de ódio e mágoa, que morrerás de amor pouco, quisera ter o ímpeto de sair pela porta e não voltar mais.

Houve um tempo em que eu redarguia, serenamente, que havíamos, sim, sido absolutamente felizes. Retocava cuidadosamente suas lembranças com as narrativas de uma viagem que fizemos, quando ainda éramos abastados de juventude e ávidos pela vida, para uma pequena choupana cedida por um tio meu, no alto de uma montanha do sul, cercada de árvores nativas e dos sons tímidos da mata. Era uma casinha miúda de madeira forte, reduzida a um cômodo e um singelo banheiro, decorada rusticamente com um sofá aveludado, uma estante de livros clássicos, uma mesinha também amadeirada e um tapete felpudo. Não tinha nada de requintado, mas ostentava deliberadamente aconchego e conforto.

"Sem título", de  s_a_smith (via flickr)


Costumava altivar suas reminiscências de como deitávamos no sofá, de corpos entrelaçados, quando o sol opaco do fim de dia atravessava a cortina de renda que enfeitava a janela de madeira para desenhar-se em nossa pele nua. Seus traços suaves, quase infantis, realçados de paixão doce, seus dedos matreiros brincando nos pelos embolados de minha barba, sua respiração fatigada do amor novo, baforando em meu peito despido, cheia de contentamento. Às vezes, adormecíamos dessa forma por horas, e só éramos despertados pelo vento frio que anunciava a noite. Ela levantava-se, de pelos eriçados, arrepiada, para fechar a janela, mas eu tomava seu corpo frágil entre meus braços e gastávamos algum tempo perscrutando o lençol de estrelas que cobria a floresta silenciosa. O vento flamulava a cortina, o frio tornava-se quase sólido e escondíamo-nos sob um cobertor xadrez para ler até dormir. Dividíamos o mesmo livro e lembrava a ela o quanto aborrecia-se por minha leitura ser um tanto mais lenta que a dela, o que sempre a fazia esperar alguns minutos até poder virar a página. Mas já não ria dessa lembrança, nem de nenhuma outra; tudo a aborrecia. "Nunca fomos felizes", repetia, "Nunca".

"Good Things",  de Erica Elan (via Flickr)

Recorria, então, à mais vívida das noites naquela cabana, quando penduramos um varal de lâmpadas na varanda de madeira, preparamos uma quantidade infindável de comida e abastecemos as taças com o mais fino cabernet. As luzes das lâmpadas cintilavam nos olhos dela, que começavam a embaçar-se do vinho, e nunca, dentre todos os anos em que vivemos juntos após aquela noite, nunca ela fora tão linda. "É o nosso varal de estrelas", ela disse, abobada pelo álcool, olhando para as luzes feito uma inocente criança. "Amo você. Agora tenho certeza". Prometi-lhe amor também e ela se aconchegou no meu colo, onde permanecemos no que pareceu um tempo infinito.

Nada disso, entretanto, tem agora qualquer valor para ela. Em suas definições de felicidade, cuja compatibilidade com as minhas tornou-se inexistente, não cabe mais o calor proporcionado pelos meus braços. Aos poucos, a erosão do tempo consumirá todas essas lembranças e, num negrume irrevogável, haverá apenas nós, abraçados, sob o nosso varal de estrelas. Até que as lâmpadas apaguem-se, uma a uma, pelo esquecimento do que outrora fora genuína felicidade.

"Birthday Party" (editada), de Annie Campbell
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crédito de fotos:

terça-feira, 18 de setembro de 2012

a filial


Não sei como aconteceu. Mentira, até sei: vi que a obvious - uma das páginas mais legais da internet - tinha um espaço reservado para novos escritores e parceiros, que ganhavam um blog dentro da página deles. Me atrevi a tentar um contato. Avaliariam o que eu já tinha de escrito - esta humilde página que vocês já estão habituados a acompanhar - e pediram-me que escrevesse um artigo nos moldes da página. O assunto, veja vocês, eram as pin ups, rs. Já dava como fracassada minha tentativa de entrar para o obvious, até que, nesta manhã, recebi o email dando como aberto oficialmente meu espaço por lá.

O nome, nem pensei duas vezes: SOB O BONÉ. Foi onde adquiri meu estilo próprio, onde encontrei a forma que gosto de escrever, onde me orgulho (às vezes) do que surge, das ideias, dos temas. E, abrindo uma nova página com chances de um público maior - a página do obvious no facebook tem mais de 120 mil likes - não significa em absoluto largar este blog, que há 4 anos tem sido minha casa na internet, literalmente. Os temas abordados serão diferentes, os textos terão suas próprias identidades tanto em uma página quanto na outra. Lá, portanto, fica sendo como a filial do bloguinho - mesmo porque creio que o Cinzento não ficaria muito feliz com uma mudança de casa dessas, rs.

Fica aqui o link pra quem quiser ver como andam as coisas lá no obvious.

A gente se vê por lá.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O 'Rancinça' 'Urso-Cinça': O 'Foo' de Danilo

Ele já sabia quando era a hora certa: bastava o sol posicionar-se, brilhante, entre as robustas castanheiras, no finzinho da tarde morna de primavera, que o pequeno Danilo prostrava-se à varanda-galho da sua casinha, esfregando as mãozinhas ansiosas uma na outra, de olhinhos esbugalhados acastanhadamente alvoroçados voltados ao céu, à procura, afoitos. Via-a surgindo de longe, do mais alto dos galhos, num mergulho majestoso e preciso, o vento contra seus pelos ruivos e sedosos, quando, subitamente, vinha o momento que Danilo mais gostava: ela, elegante, abria os braços e, feito mágica ou coisa qualquer que o esquilinho não sabia explicar, ela plainava entre os galhos da floresta, garbosa, ziguezagueando entre os troncos, fazendo as folhas esverdeadas flamularem ao agito da sua enorme e felpuda cauda rubra. Ao passar por Danilo, rápida feito uma bala de canhão, ela acenava com as patinhas curtas, um sorriso interrompido pelos dentinhos salientes, e lá ia ela, sumindo na floresta densa em seu inusitado voo.




Danilo serpenteou pelo tronco da castanheira e saiu a correr pela floresta, que reverberava em fluorescência primaveril; atravessou uma trilha cercada de alvas margaridas, um atalho coberto de grama fresca, adornado com florescidas begônias, e cruzou uma floresta de pinheiros em cujos troncos brotavam excêntricas e requintadas orquídeas multicoloridas. Alcançou, esbaforido, uma caverna encrustada nos pés da montanha e bateu à tosca porta, com mãozinhas urgentes, berrando:

- CINCENTO! CINCENTO! Sou eu, amigo!

- Não tem ninguém em casa! - foi a resposta que veio lá de dentro, em forma de urro abafado pelas truculentas paredes de pedra.

- Não seja desagradável, urso - respondeu uma voz feminina e a porta da caverna abriu-se. - Olá, Danilo.

- Oi, Eduarda. Tenho um assunto de muita relefância para tratar com focês. Posso entrar?

A ursa-parda deu passagem para o pequeno esquilo, que encontrou o corpulento amigo urso jogado no chão da caverna, simulando um ronco profundo de quem dorme há dias. Eduarda, todavia, sentando-se ao lado dele, acotovelou-o, com força, na pança acinzentada e, muito dissimulada, disse docemente:

- Conte-nos, Danilo, o que está te afligindo? Cinzento está muito interessando em saber.

- Eu estou interessado é no jantar - resmungou Cinzento, aprumando-se, aborrecido.

- Eu não sei o que está acontecendo comigo - começou o roedor. - Tem essa esquila, minha vicinha, que não pula de galho em galho, como todos os outros esquilos. Ela é meio esquila, meio passarinha...

- O quê? - Eduarda interrompeu, estupefata. - Uma esquila-alada?

- Depois de um alce-árvore, essa baboseira não me surpreende em nada - comentou Cinzento, virando os olhos para o teto e coçando a enorme barriga.

- ...e ela abre as assas e sai foando pela floresta, e meu coraçãocinho parece que fai explodir, Cincento! - expôs Danilo, em meio à chuva de saliva e excitação.

- Um infarto fulminante! Tadinho, tão novo para morrer...

- Não seja besta, urso! - Eduarda reprovou-o, com outra cotovelada. - Não está vendo que o menino está apaixonado?

- Apaixonado? - Danilo, confuso, repetiu, pondo-se a mover em círculos pela caverna pouco iluminada. - E isso tem cura?

- Pergunte ao seu amigo rabugento - Eduarda respondeu, zombeteira, com um sorriso nas mandíbulas.


- Cincento, focê tá contaminado?


Grrrrrrrunhindo aborrecido, Cinzento virou para o outro lado, escondendo-se na penumbra da caverna a resmungar.





- Venha cá, amiguinho - Eduarda chamou, e o roedorzinho saltitou em direção ao ombro da ursa-parda. - O que precisa fazer é falar com ela, dizer, sinceramente, como se sente quando a vê,  explicitar as emoções que ela faz florescer no seu peito. De resto, você é o esquilo mais charmoso de toda a floresta, duvido muito que ela não se encantará com esse seu jeitinho de falar.


- Focê acha mesmo, Eduarda? - duvidou, inseguro, abobalhado por ser a primeira vez que lidava com sentimentos tão intensos.


- Eu e Cinzento garantimos o sucesso desta missão. Não é mesmo, urso?


- Danilo? Charmoso? - e Cinzento proferiu uma risada irônica a qual Eduarda não pôde repreender, desta vez, com seu cotovelo ossudo.

Cheio de si com os elogios de Eduarda e ignorando a zombaria do amigo urso, Danilo ia correndo de volta pela floresta, decidido a tentar qualquer aproximação com a esquilinha misteriosa de habilidades excêntricas. O sol mostrava-se pálido por entre a folhagem densa da floresta. Danilo, então, decidiu tomar um caminho mais curto, às margens do rio, para chegar à casa antes que anoitecesse. Foi lá, no charco úmido do pântano que se formava no encontro dos rios, que topou com um parente distante, um primo com quem pouco convivia, um  castor de aparência abatida, enlameado, a crosta de sujeira envolvendo-o da cabeça esguia - na qual dois olhinhos traiçoeiros investigavam tudo com curiosidade - à cauda achatada que lhe servia de pá, um utensílio de trabalho preso ao próprio corpanzil gorducho. Trabalhava numa barreira enorme, feita de lama e galhos, que ligava uma margem à outra numa ponte arcaica e improvisada. Chamava-se Nestor e, ao notar a presença pouco provável de Danilo ali, largou a labuta infeliz e assoviou:

- Ei, ei, ei... Veja só o que o vento trouxe. Como vai, primo?


Danilo parou de súbito quando o castor aproximou-se e envolveu-o nos braços, enlameando seu pelo.


- Olá, Nestor.

- Que engraçado 'ocê aparecer aqui hoje - disse o castor musicalmente, o bote pronto a ser dado. - Aquela coruja fofoqueira andou dizendo por aí que 'ocê está apaixonado, veja só. - Danilo esbugalhou os olhos, as palmas das mãozinhas começando a suar. - E ainda: por uma esquila-passarinha!

- F-f-f-eja bem, Nestor - gaguejou Danilo, afastando-se um tanto, pronto para fugir quando preciso do venenoso castor. - Nem tudo que a Corina fala por aí pode-se acreditar, focê sabe.


- Ufa, era só boato então, primo? Porque 'oce deve saber que esquilas-passarinhas só namoram com bichos que também podem voar, né? - Nestor sorriu, debochado, enquanto o coração de Danilo começava a trincar - É sorte minha ter essa cauda que me serve de hélice, 'ocê não acha, primo?


- MAS EU TAMBÉM SEI FOAR! - desesperou-se Danilo, ao que o castor, cínico, fingiu surpresa.


- Então eu já sei o que teremos de fazer. Amanhã, pela manhã, encontraremo-nos à beira do Abismo da Solidão. Faremos a apresentação de nossas habilidades no voo e aquele que sobreviv-- quero dizer, aquele mais hábil e perfomático terá sua chance com a esquila-passarinha.





- M-m-mas... mas Nestor...


- Que é, primo? 'Ocê tá com medo, é?


Ficou, assim, marcado o duelo entre os dois roedores alados. Um desafio entre a ingenuidade de um, e a falta de caráter de outro, pode-se dizer.



*


Os primeiros raios opacos de sol iluminavam o Abismo da Solidão, refletindo na bruma que circundava o paredão de pedra, feito uma boca esfumaçada exalando o fim da madrugada primaveril, uma bocarra de dragão para a qual Danilo olhava, apreensivo, tremendo da ponta dos dedinhos afiados às orelhas felpudas. Um vento furioso vinha lá debaixo e contornava o abismo, absoluto, em cuja força trouxe uma ave de plumagem negra e olhos ágeis arregalados, a piar de asas abertas:

- Daniluuuu-uhh.

O esquilo acenou de mãozinhas trêmulas e a coruja fez um pouso conturbado, livrando-se do fluxo do vento que subia em direção ao céu, a clarear serenamente.

- Achei que focê não firia, Corina. Trouxe o que te pedi?

- Aqui estão-uh-uh - e lhe entregou duas de suas penas, pretas, grandes e macias. - Você tem certeza do que está fazendo, Danilo-uuh? A última vez que noticiei jornalisticamente o voo de bichos que não voam foi um concurso de galinhas que se espatifaram no chão.

Danilo segurou cada pena com uma das patinhas e as agitou no ar, para cima e para baixo, num espevitado fluxo contínuo. Esbaforido, ele gritava:

- Foar cansa, Corina!

- Mas 'ocê ainda está de pés no chão, primo.

Era o lameado Nestor, de braços cruzados, rindo-se do esforço de Danilo. Corina torceu o bico e foi tirar satisfações com o castor, as penas ouriçadas:

- Que tal você torcer esse rabão e mostrar pra gente o que é voar, seu baderneiro-uhhh.

- E quem chamou a Srta. Fofoca para o evento, posso saber? - Nestor caçoou, as bochechas infladas com desdém. - Anda primo, 'ocê já pode fazer sua exibição. Estou ansiosíssimo.

As pernas de Danilo bambeavam.

- M-m-mas focê pppode foar primeiro, Nestor. Precisso preparar-me.

- Nada disso, primo. Primeiro os roedores mais prestigiados da família.

- M-m-mmmas Nestor...

- VAI LOGO!

E, com um traiçoeiro empurrão nas costas, lá ia Danilo, em direção à boca esfumaçada, ao fundo do abismo, de encontro à ventania que despenteava seu pelo. Desesperado, começou a bater as penas no ar afoitamente, o que não apresentou resultado algum: continuava c
                                                      a
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                                                      o desenfreadamente, com o vento a zunir pelas suas orelhas, sua força fazendo as mandíbulas do esquilinho ondularem. Não via chance de sair daquela situação, pobre Danilo, apenas aguardava o baque surdo e forte contra o chão rochoso que ia surgindo por entre as nuvens. Mas, veja só que coincidência, vinha por ali ela,  p
                                            l
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                                                                o vagarosamente, de braços abertos, espantada com a cena inusitada: um esquilo a bater as asas. Danilo avistou ela a se aproximar e seu nervosismo - como se fosse possível - multiplicou-se. Curiosa e assombrada, perguntou:

- Posso estar enganada, mas
não me parece que você seja
um esquilo-planador.

- E EU NÃO SOU MESMO.
ME AJUDA, POR FAFOR,
ESQUILA-PASSARINHA

                    - Esquila-passarinha? Mas que
                      bobagem é essa? - ela riu-se.
                      - Passarinhos têm asas. O que
                      tenho é essa membrana que me
                      permite...

- ME SEGURA,
EU VOU MORREEEER!

                                                                 - Calma, eu
                                                                 te pegooo...

                                                                                                   ... e segurou a mão de Danilo com força, trazendo-o para junto de seu corpo, abraçando-o sob as membranas que uniam seus braços ao corpo. Respirou aliviado, o pequeno esquilo aventureiro, sentindo o acalento dos pelos avermelhados dela.

- Que ideia besta foi essa de tentar voar, rapazinho? - ela perguntou, enquanto girava no ar, na direção da floresta.

- Achei que não fosse gostar de mim se eu não firasse um esquilo-passarinho.

- Gostar de você? Mas sequer sei seu nome.

- Sou o Esquilo Danilo - apresentou-se, embasbacado, de olhos aguados.

- Chamo-me Vanusa.

- Fanussa?

- Não bobinho, Vanusa - ela riu-se, deliciada, enquanto os dois sumiam, abraçadinhos, em meio à folhagem dos pinheiros.


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As ilustrações para este conto de O Ranzinza Urso-Cinza foram feitos com toda a delicadeza e talento de Olívia Portela. Fica aqui o agradecimento verdadeiro e a admiração para o ar sensível que você deu às ilustrações, querida Olívia. (:


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Outros contos da série:

O Ranzinza Urso-Cinza: Hibernação
O ranzinza Urso-Cinza: O Solstício de Verão

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Oito Canções para Dias de Chuva

(Caso não esteja chovendo quando estiver lendo este texto, clicar AQUI pode ser realmente útil. Assim como clicar no nome das músicas durante o texto pode tornar a experiência de lê-lo um tanto mais interessante. As imagens que ilustram este texto foram gentilmente roubadas do flickr. Os créditos para todas elas estão devidamente no final do post.)
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01. "Manhattan Skyline", Kings of Convenience

A janela salpicada de gotículas minúsculas embaçava a realidade exterior, ou assim lhe parecia, de pálpebras pesadas e pupilas desfocadas. Do terceiro andar, avistava abaixo um mar de sombrinhas multicoloridas, vermelhas-incandescente, azuis-turquesa, verdes-fluorescente, amarelas-pôr-do-sol, assim como guarda-chuvas sobriamente negros, que disputavam o espaço das calçadas, um borrão de cores sob a chuva forte, um encantado fluxo cromático camuflando as pessoas que se protegiam da água.


Monday After Rain

Ele tinha uma caneca à mão que exalava o cheiro doce de café por toda a extensão do quarto de hotel, mergulhado numa tênue penumbra acinzentada. Apoiando a testa na janela fria, triste, tristíssimo, bebericou o último gole do negro néctar. Vestiu um casaco sobre o suéter de lã, preparando-se para enfrentar o frio úmido de agosto. A chuva, lá fora, mantinha sua percussão ritmada nos telhados, sua música improvisada no vidro da janela, correndo pelas calhas e meio-fio, lavando a tarde plúmbea que morria lentamente. Ele, de mochila nas costas, passagem no bolso e guarda-chuva à mão, posicionou os fones do iPod no ouvido e, diante de um último olhar melancólico para o quarto, trancou a porta e ganhou o corredor.

02. "Furrows", I am Oak

Juntou-se à correnteza de guarda-chuvas e sombrinhas, um aglomerado heterogêneo de pessoas apressadas, irritadas, seus ternos impecáveis molhados pela chuva, os vestidos deixando à mostra canelas encharcadas. Os rostos, assombreados pela proteção à chuva, traziam nos traços uma melancolia pungente, olhos nebulosos que miravam as poças, acumuladas nas imperfeições das calçadas; lábios crispados em absoluto silêncio, como uma plateia extasiada que assiste ao concerto da chuva, batucando, delicada, nos guarda-chuvas. Ele tinha uma mão no bolso, passos incertos obstruídos pela multidão molhada, e teve dificuldade pra alcançar o ponto de ônibus.


Sob a proteção da marquise, cercado por propagandas luminosas e pessoas aborrecidas, fechou o guarda-chuva e aguardou. Os carros, na avenida, passavam, velozes, através das cortinas de chuva, deixando um rastro de frio que o fez puxar o zíper do casaco e esfregar as mãos com força, as bochechas, revestidas de barba espessa, avermelhando-se com a exposição ao vento invernal. O frio, todavia, não era só externo. Fazia frio também dentro dele, uma nevasca bruta que lhe cobria o coração naquela triste tarde chuvosa de agosto.


Uma vaga reminiscência surgiu em sua mente, de repente, despertada pelas gotinhas que acumulavam-se à borda da marquise e pingavam sincronizadamente. Era domingo à tarde, e estavam sentados num café, a algumas esquinas do ponto em que se encontrava agora, bem próximos, aquecendo-se mutuamente do frio. Ela adicionava umas gotinhas de adoçante à xícara de café e, na enevoada lembrança, no quebra-cabeça de imagens pouco nítidas, disse-lhe alguma irrelevância que configurou-se em sorriso. Um sorriso tímido, de lábios finos, de bochecha com covinhas, de beleza distinta, serena, de felicidade secreta, um sorriso que parecia preencher-lhe de contentamento. Foi quando descobriu que a amava, e se acometeu de um temor genuíno, que reluziu em seus olhos castanhos.

"Que tens, amado?", ela questionou, bebericando o café.

"Medo."


O microônibus estava vazio. No breve torpor do interior aquecido, pôde tirar o casaco, que colocou no assento ao lado, junto com a mochila xadrez. Fazia-se noite, lentamente, enquanto o ônibus cruzava a avenida movimentada; as luzes amareladas dos postes refletiam-se nas gotinhas de chuva acumuladas no vidro, criando uma constelação, um microcosmos que ele espreitava distraído. Pensava em sua casa, a algumas centenas de quilômetros de distância, no cheiro específico que ela tinha, na saudade de sua cama, seu travesseiro já adaptado à forma de sua cabeça. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, sentia vontade tremenda de ficar ali, tornar aquela cidade seu lar, pedir a ela um lugarzinho qualquer em seu apartamento no qual pudesse arrumar suas coisas e se aconchegar. Aquele sorriso... Podia acordar todo dia ao lado daquele sorriso, ele bem sabia.

Rain Bus Manchester Piccadilly

Mas ambos eram estrelas, ele sabia, em cosmos distintos - embora a velocidade do ônibus fizesse as gotinhas correrem pelo vidro e se juntarem, como uma explosão cósmica milimétrica, um encontro inesperado dos astros que nunca deveriam ter suas rotas adjuntas. Eram estrelas. A se afastar, na velocidade da luz, para nunca mais avistarem o brilho uma da outra.


A rodoviária interestadual fervia em movimentação, uma ebulição de pessoas, malas e histórias, encontros e despedidas, sorrisos e lágrimas. Ele dirigiu-se à plataforma F2, na qual o ônibus que o levaria de volta à realidade, ao dia-a-dia, já encontrava-se parado e de portas abertas. No burburinho das pessoas excitadas, mesclado com o barulho da chuva batendo contra a lataria do ônibus, ele acendeu um cigarro, de coração apertado, como se estivesse prestes a deixar uma parte de si para trás ao entrar naquele ônibus.

Um senhor aproximou-se, pediu-lhe que acendesse seu cigarro.

- Tem os olhos tristes, meu rapaz.

- Estou deixando algo importante para trás - ele respondeu com displicência, soprando a fumaça pro ar.

O senhor meneou a cabeça, pesaroso, e foi fumar seu cigarro na outra ponta da plataforma. Ele apagou a ponta do cigarro com a sola do tênis e subiu no ônibus, procurando o assento identificado na passagem.

Poltrona 16. Ele riu da ironia.



06. "Summer Bird Diamond", Seabear

Há três dias atrás, sentado à décima-sexta poltrona daquele mesmo ônibus, ele chegava à cidade, meio que por aventura, para conhecer uma menina com quem havia trocado emails por vários meses seguidos. Não sabia o que esperar, afundado no assento com as mãos suadas de ansiedade, até o ônibus estacionar na plataforma.

Estava parada ali, a pele alva roseada pelo frio, os enormes olhos verdes apreensivos a perscrutar cada pessoas que descia do ônibus. Protegia-se da chuva com um guarda-chuva branco estampado com milhares de coraçõezinhos avermelhados, e ele simplesmente sabia que era ela. Foi em sua direção, mãos no bolso, tímido, e ela abriu o sorriso de covinhas, dizendo:

"Bem-vindo a Macondo."

07. "Going Nowhere", Elliott Smith


Corria. As pernas a passos largos, como um atleta, a respiração descontrolada, apenas corria, sem se preocupar com os olhares curiosos que o observavam. Tinha dificuldade em abrir caminho através das pessoas, lentas, cheias de bolsas, atravancando o caminho, as calçadas, as esquinas. A chuva escorria por seu cabelo, molhava a roupa, não se importava, apenas corria, porque a cada passo sentia-a mais próxima e sabia que ela sorriria daquela forma e, de repente, ele se sentiria bem novamente. Achava que lágrimas escorriam de seus olhos, mas não tinha certeza, apenas corria, corria, até alcançar a porta e bater, com pressa, com ansiedade.


Street Light 3

08. "Cold Water", Damien Rice


Ela abriu a porta, vestida com roupas simples, os cabelos presos num rabo-de-cavalo. Espantou-se em encontrá-lo ali, ensopado da chuva, embora tivesse um guarda-chuva à mão. Ele agradeceu por ter chuva em seu rosto: ela não podia, dessa forma, ver as lágrimas em seus olhos.

- Tentei ir embora sem me despedir. Achei que seria mais fácil. Mas não consegui.

Covinha. Ela acariciou o rosto dele e deu-lhe espaço para que entrasse. Os dois, então, sumiram no calor do quarto.


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Playlist:
http://8tracks.com/rrrrapha/8-cancoes-para-dias-de-chuva

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Créditos de Imagens:
(juro que só roubei fotos de usuários que permitiam o download de suas fotos, rs)

"Monday After Rain", por sue tortoise
"Rain Buys Manchester Piccadilly", por Waka Jawaka
"Street Light 3", por Lisa Hindelang