domingo, 18 de dezembro de 2011

aniversários.


Verão de 1957.


Acordara bem cedo, quando os primeiros raios de sol entravam pelas frestas da janela e coloriam o chão de tacos malcuidados, os passinhos desordenados cruzando a casa silenciosa a caminho da sala de estar. Lá estava, no canto da sala, envolvida pela penumbra, a pilha de presentes que, embora não passasse de três ou quatro pacotes ornamentados com belos laços vermelhos e papel colorido, a seus olhinhos ingênuos parecia uma montanha imponente de desejos embrulhados. Tomava cada um por vez nas mãos miúdas, sentia o peso, chacoalhava-os no ar, mesurando inconscientemente uma escala de importância para escolher qual abriria primeiro. Era por essa hora que a mãe despertava, alertada pelos barulhos ansiosos do menino e, ainda vestida na camisola de seda, abria as janelas e beijava seu cocuruto amavelmente, desejando-lhe “feliz aniversário”. Mais tarde, embora ainda não tivesse ciência à época, aquelas manhãs, envolto nos braços maternos e ao som doce de sua voz, tornar-se-iam suas melhores e mais agradáveis lembranças.
            Ao entardecer, sob o céu alaranjado de verão, o gramado do quintal, no alto de uma privilegiada colina, fora preenchido por balões multicoloridos, e o canto das andorinhas mixava-se com os berros estridentes das crianças, que corriam despreocupadamente, em brincadeiras desorganizadas, em deliciosas travessuras, com copos de plásticos cheios de refresco nas mãos e as bocas cheias de pipoca. Ele, vestido em sua melhor camisa de linho, engomada impecavelmente e abotoada até a gola, os sapatos engraxados com capricho, sorria satisfeito, com as mãos enterradas no bolso da calça cáqui, parecendo um pequeno homenzinho de seis anos. Interagia moderadamente com as crianças endiabradas, recusando com educação os convites para os tantos piques, tentando evitar sujar a roupa nova e bonita, numa atitude peculiar para sua pouca idade. Os convidados pareciam desapontados por um instante que durava até alguma outra criança matreira encostar-lhe a mão nas costas e passar o pique, saindo, em seguida correndo e rindo.
Afastou-se deles, a certo momento, suas vozes agudas e desafinadas tornando-se sussurros desimportantes, e apoiou-se na cerca de madeira tosca que circundava a casa. Foi quando seus olhos perderam-se na grandiosidade dos campos verdejantes tocados delicadamente pelo tênue sol do fim do dia, seus pequeninos pulmões encheram-se dum ar impregnado de epifania, e teve, pela primeira vez na vida, consciência de que era alguém, de que seu corpo frágil estava absorto de existência. Sentiu o peso do mundo comprimi-lo, aquela coisa enorme e intocável, da qual fazia parte de certa forma, agora tinha certeza. Viu, traçadas diante de seus olhos, as linhas irrevogáveis do destino, os traços desordenados do tempo, a amplitude de sua história, a ser escrita num caderno cujas páginas ainda encontravam-se em branco, a caneta suspensa, tomada em punho pela ventura de tudo que estaria por vir.
            Durou pouco; num segundo depois, avistou a silhueta de sua mãe contra a forte luz crepuscular, berrando seu nome, nas mãos um bolo cheio de glacê confeitado por ela mesma, as crianças ansiosas em volta dela. Olhou uma última vez para os campos, significativamente, e, a passos lentos, voltou para sua festa de aniversário.

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