sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

a música sob o boné: meus cinco álbuns favoritos do ano.

             Embora música seja uma das minhas paixões mais veementes, preciso confessar que sou deveras displicente com a apreciação dos álbuns mais comentados do ano, com os lançamentos mais quentes da banda mais hype, com os clipes que todos estão comentando e até mesmo com os novos álbuns de bandas que já são membros honorários da minha lista de artistas favoritos — o Biophilia, por exemplo, ainda está na eterna lista de álbuns para serem ouvidos com um cuidado extra. Parte disso é dado pelo cotidiano corrido, que, muitas vezes, não permite a degustação musical da forma que você gostaria de fazer — sentando confortavelmente, com fones no ouvido, com as letras na mão, num ambiente propício à boa audição dum álbum; a outra parte é dada pela minha preguiça mesmo, não vou negar (sou um preguiçoso de carteira assinada e não tenho cara-de-pau para desmentir tal fato).
            Não obstante, durante todo o ano de 2011, muita música foi ouvida por esse ser que vos escreve diretamente deste irrelevante blog. Sempre tento conciliar minha música antiga, minhas bandas favoritas, com alguns lançamentos pertinentes — como veremos na lista abaixo —, com artistas indicados por amigos, que já conhecem meu gosto — esse ano, por exemplo, pirei nos álbuns do Jens Lekman, indicação antiga da Bia — e com bandas clássicas, obrigatórias, como o Bookends, do Simon and Garfunkel, que ouvi à exaustão durante todo o ano. E quando começam a pipocar (lindo verbo, alguém me contrata para ser crítico de micareta?), em meados de dezembro, todas as listas com os melhores discos do ano, vejo o tanto de coisa que foi ficando para trás e que terei que ouvir numa outra ocasião. Mas não importa: listados abaixo, os meus cinco álbuns favoritos do ano. Se quiserem, enviem por comentários a lista de vocês, com seus discos favoritos de 2011. Seria bacana.

5. “Let England Shake”, PJ Harvey.



            Obviamente, sempre tive conhecimento de que PJ Harvey é uma das cantoras mais importantes do cenário musical atual, mas nunca havia escutado um álbum inteiro dela. Peguei-me, certa manhã, extasiado pelo clipe de The words thar maketh murder, pela voz marcante acompanhada, em algumas partes, apenas por uma cítara. E o êxtase simplesmente se estendeu diante das doze faixas que compõem o belíssimo e intimista Let England Shake. Com letras de bela poesia, Harvey desbrava a Inglaterra pós-Primeira Guerra Mundial, descrevendo os horrores da guerra — “I've seen soldiers fall like lumps of meat”, canta ela em The words the maketh murder —, a paisagem cinzenta do seu país natal e as consequências da guerra. Mas o álbum vai muito além de referências históricas, com suas melodias trabalhadas, e a bela voz de Harvey guiando o trabalho de forma fenomenal.

- Faixas favoritas: The words that maketh murder, England e Hanging in the wire



4. “Canções de Apartamento”, Cícero



            Escrevi sobre o disco do carioca Cícero há alguns dias atrás aqui no blog e não posso deixar de citá-lo também nesta lista. Canções de apartamento foi mais que um álbum, foi um companheiro diante de coisas que eu estava passando, foi trilha sonora de noites reflexivas, seus versos foram poesias para verdades que eu precisava enfrentar. Representante da nova safra de ótimos artistas brasileiros, Cícero é dono de uma poesia bonita e cotidiana, que coloca tão vivamente nos seus versos. O clima intimista que sua voz sussurrante e o violão dedilhado sugerem é, muitas das vezes, o que mais procuro na música. É onde me sinto em casa num álbum — e, cabe aqui, novamente, mas um agradecimento a ele por ter aberto a porta do seu apartamento e ter nos dado esse álbum lindo de presente.

- Faixas favoritas: Tempo de Pipa, Ensaio sobre ela e Açúcar ou adoçante?

Post anteior sobre o álbum canções de apartamento aqui.

3. Metals, Feist



            Leslie Feist é, já há algum tempo, minha cantora contemporânea favorita. Já esperava um trabalho lindo dela, obviamente, e, embora o Reminder permaneça como meu favorito, Metals é um álbum de muita beleza, que a afasta do pop de 1,2,3,4, por exemplo, e mostra a vontade de se arriscar em novas sonoridades, novos desafios. A potente voz da canadense, suas composições intimistas, seus arranjos que, às vezes, beiram o obscuro se juntam num trabalho completo e surpreendentemente bonito.

- Faixas favoritas: Graveyard, How come you never go there e Antipioneer



2. Toque Dela, Marcelo Camelo



            Como todo bom fã de Los Hermanos, tenho dificuldade, às vezes, de ser imparcial sobre os novos trabalhos dos ex-integrantes da banda:  sou fã do debut do Little Joy e o Sou, primeiro solo do Camelo, foi declarado, hiperbolicamente, como álbum da minha vida há algum tempo atrás (leia post aqui). Toque Dela“Triste é viver só de solidão”, dando aos desavisados a falsa ideia de que o caminho a ser trilhado será novamente a tristeza que permeia o Sou do começo ao fim. Mas Toque Dela é uma ode ao amor, sutil, sussurrada, mas de beleza ímpar. até prega uma peça nos seus primeiros versos, quando, à voz sussurrante e instrumentação melancólica, Camelo declara que
            A mudança de sonoridade de um disco para o outro pode ser explicada pelos novos ares tomados por Camelo, que largou o Rio de Janeiro para morar em São Paulo, perto da namorada Mallu Magalhães. Ela, presença marcante no dueto de Janta do primeiro álbum, desta vez aparece apenas num singelo backing vocal na faixa Vermelho — uma das mais belas do álbum. Mas sua presença, entretanto, permeia toda a temática das canções e os motes dos versos cheios de paixão incondicional. É o amor dos dois que é recitado lindamente nos versos das 10 canções que compõem o álbum.
            Também conferi a apresentação ao vivo do cara no Circo Voador num dos primeiros shows da nova turnê e pude presenciar um Camelo feliz, sorridente e, principalmente, satisfeito com o resultado do seu trabalho. É do Camelo meu segundo álbum favorito do ano.

- Faixas favoritas: A noite, Tudo que você quiser, Três dias e Vermelho.



1. Bon Iver, Bon Iver



            Justin Vernon saiu da cabana. E, o pior de tudo, não avisou para a gente.
            Como todo bom fã que tem paixão pelo For Emma, Forever Ago, não foi fácil achar Vernon fora de sua hibernação, deixando de lado os violões dedilhados e as letras heartbreaking que consagraram seu primeiro trabalho. Mas, não é à toa que Perth, a faixa que abre o segundo e espetacular álbum do Bon Iver — destaque em praticamente todas as listas de álbuns do ano das principais revistas dedicadas a música — começa com um silêncio profundo de 6 segundos, como se afastasse os últimos resquícios do álbum anterior e convidasse para uma nova jornada, uma nova experiência.
            Os que aceitam o desafio embarcam numa viagem por mundos de sonhos criados por Vernon, por uma experiência auditiva que vai além dos limites dos sons criados pelos violões melancólicos, os sintetizadores que salpicam as faixas, a bateria, ora marcante como de uma banda marcial, ora coadjuvante dos arranjos cheio de nuances — é possível ouvir um sininho de bicicleta em Michicant, por exemplo — e, principalmente, da potente voz de Justin Vernon, do seu falsete tão característico. As composições também refletem essa aura onírica, já que Vernon tem um jeito peculiar de compor, preocupado muito mais com a sonoridade das palavras do que com o valor semântico delas — o que torna alguns versos sem sentido, outros um tanto herméticos para serem compreendidos. Os nomes das canções representam lugares, sejam eles de verdade, sejam lugares imaginários, o que reflete muito bem a forma como a mente funciona durante os sonhos.
            Aumentando a experiência, há pouco tempo foi lançando a versão deluxe do álbum, que contém um DVD com vídeos para cada uma das faixas, o que leva Bon Iver para um patamar áudio-visual. Uma verdadeira obra de arte, desde a belíssima capa, é de Justin Vernon e seu Bon Iver meu álbum favorito dentre os lançados neste ano.

- Faixas favoritas: Perth, Michicant, Wash. e Beth/Rest.


domingo, 18 de dezembro de 2011

aniversários.


Verão de 1957.


Acordara bem cedo, quando os primeiros raios de sol entravam pelas frestas da janela e coloriam o chão de tacos malcuidados, os passinhos desordenados cruzando a casa silenciosa a caminho da sala de estar. Lá estava, no canto da sala, envolvida pela penumbra, a pilha de presentes que, embora não passasse de três ou quatro pacotes ornamentados com belos laços vermelhos e papel colorido, a seus olhinhos ingênuos parecia uma montanha imponente de desejos embrulhados. Tomava cada um por vez nas mãos miúdas, sentia o peso, chacoalhava-os no ar, mesurando inconscientemente uma escala de importância para escolher qual abriria primeiro. Era por essa hora que a mãe despertava, alertada pelos barulhos ansiosos do menino e, ainda vestida na camisola de seda, abria as janelas e beijava seu cocuruto amavelmente, desejando-lhe “feliz aniversário”. Mais tarde, embora ainda não tivesse ciência à época, aquelas manhãs, envolto nos braços maternos e ao som doce de sua voz, tornar-se-iam suas melhores e mais agradáveis lembranças.
            Ao entardecer, sob o céu alaranjado de verão, o gramado do quintal, no alto de uma privilegiada colina, fora preenchido por balões multicoloridos, e o canto das andorinhas mixava-se com os berros estridentes das crianças, que corriam despreocupadamente, em brincadeiras desorganizadas, em deliciosas travessuras, com copos de plásticos cheios de refresco nas mãos e as bocas cheias de pipoca. Ele, vestido em sua melhor camisa de linho, engomada impecavelmente e abotoada até a gola, os sapatos engraxados com capricho, sorria satisfeito, com as mãos enterradas no bolso da calça cáqui, parecendo um pequeno homenzinho de seis anos. Interagia moderadamente com as crianças endiabradas, recusando com educação os convites para os tantos piques, tentando evitar sujar a roupa nova e bonita, numa atitude peculiar para sua pouca idade. Os convidados pareciam desapontados por um instante que durava até alguma outra criança matreira encostar-lhe a mão nas costas e passar o pique, saindo, em seguida correndo e rindo.
Afastou-se deles, a certo momento, suas vozes agudas e desafinadas tornando-se sussurros desimportantes, e apoiou-se na cerca de madeira tosca que circundava a casa. Foi quando seus olhos perderam-se na grandiosidade dos campos verdejantes tocados delicadamente pelo tênue sol do fim do dia, seus pequeninos pulmões encheram-se dum ar impregnado de epifania, e teve, pela primeira vez na vida, consciência de que era alguém, de que seu corpo frágil estava absorto de existência. Sentiu o peso do mundo comprimi-lo, aquela coisa enorme e intocável, da qual fazia parte de certa forma, agora tinha certeza. Viu, traçadas diante de seus olhos, as linhas irrevogáveis do destino, os traços desordenados do tempo, a amplitude de sua história, a ser escrita num caderno cujas páginas ainda encontravam-se em branco, a caneta suspensa, tomada em punho pela ventura de tudo que estaria por vir.
            Durou pouco; num segundo depois, avistou a silhueta de sua mãe contra a forte luz crepuscular, berrando seu nome, nas mãos um bolo cheio de glacê confeitado por ela mesma, as crianças ansiosas em volta dela. Olhou uma última vez para os campos, significativamente, e, a passos lentos, voltou para sua festa de aniversário.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

mãos.

Vazio. O quartinho alugado no oitavo andar claustrofobicamente cheio de vazio, escorrendo pelas paredes descascadas, manchando o teto desbotado escurecido pela noite fria de julho, ocupando cada mísero centímetro do chão empoeirado e encardido, esparramando-se nas superfícies dos móveis antiquados e confusamente dispostos. Vazio que ela inala com dificuldade, mergulhada num mar plácido de cobertores felpudos e roídos, vazio que entope suas vias respiratórias, engarrafa o tráfego fluente do oxigênio que, por ora, não deseja, pudesse, assim, colocar fim à inquietude do corpo frágil e doente que repousa no colchão torto ou à insanidade berrante e irrequieta da sua mente confusa. Tudo o que lhe fora deixado, aquele vazio que ocupava cada quina do quarto e de sua vida, e que a mantinha acordada, de olhos arregalados, a noite toda. Vazio ensurdecedor das partituras silenciosas, ópera minuciosamente composta de sussurros do vento frio a balançar a janela de madeira. Vazio.

Acende um abajur. Veste, sobre o cadavérico e pálido corpo nu, um vestido longo e vermelho. Procura os sapatos, na penumbra cortada apenas pela tênue luzinha mórbida, calça-os e senta-se defronte a penteadeira antiquíssima para pentear os cachos castanhos. Fantasmagórica é sua visão exposta friamente no reflexo do espelho sujo. Toma a maquilagem e se pinta sem vaidade, colore os olhos manchados de mágoa e insônia, realça a opacidade do azul de suas pupilas expressivas, mas não expurga os demônios da tristeza que assombram sua beleza. Colore os lábios de lívido tom escarlate, borra a boca carnuda que engole a vontade de viver — ou de não morrer, não se sabe bem — compilada em pequenas pílulas prescritas. Apaga-se a luz, some o espectro no breu.

Ecoam os saltos na rua vazia, molhada da chuvinha fraca e insistente. Abraça-se, protege-se do vento constante que lhe beija as bochechas magras, as gotas da chuva borrando os olhos mal-pintados, umedecendo os cabelos, fluindo pela fronte. A pele fina arrepia, o frio desperta alguma vida nas veias arroxeadas, visíveis no lençol epidérmico que lhe serve de invólucro. Vê as luzes de um barzinho medíocre e imundo brilharem no escuro da madrugada fria. Anda o tão rápido quanto os saltos permitem, entre as cortinas de chuva e vento, e se abriga lá.

Trata-se de uma espelunca mal-iluminada, fedorenta e imunda, com pouco mais de três almas perdidas, bêbadas e debruçadas no balcão longo. Ninguém nota sua entrada, exceto um rapaz, sentado a uma mesa no fundo escuro do botequim. Ele acompanha, com olhos curiosos, ela pedir vinho, que lhe é servido nunca caneca grosseira e encardida; não se importa, dá uma bela golada no vinho barato e senta-se a uma mesa ao seu lado, embora sequer note a presença dele. Apóia a caneca na mesa arranhada e gasta algum tempo tentando ajeitar os cachos molhados do cabelo, quando a voz dele ressoa inadvertidamente em seus ouvidos:

— É de se estranhar uma dama bela como ti num cafofo fétido destes, mas confesso que se trata de uma agradável surpresa.

Vira-se para ele, subitamente assustada, e se depara com dois olhos castanhos mirando-a com interesse sob a luz precária. É um rapaz jovem, de traços firmes e brutos, barba e cachos malcuidados, vestido num terno notavelmente barato, mas que lhe garantia certo charme. Encarou-o displicentemente, como quem visita uma galeria de arte vulgar, mas os olhos azulados rapidamente tornaram-se para a caneca de vinho. Ele sorriu galantemente, supondo tratar-se de lúdico flerte, necessidade feminina de valorizar-se através da indiferença forçada. Anunciou seu nome, graça comum herdada da devoção de sua mãe ao santo, e esticou a mão esquerda no esforço de conseguir um cumprimento. Mão de dedos longos e grossos, nos quais ela posou os olhos com discreta curiosidade; mão de linhas misteriosas, de roteiros inusitados, de marcas significativas, pequenos recortes atemporais na carne crua; mão de subterrâneas veias correndo sangue feito canais, o fluxo ininterrupto da vida posto diante de seus olhos; mão de unhas rusticamente cortadas, mão masculina, bruta e, paradoxalmente, afetuosa, convidativa; mão na qual ela entregou a sua, hipnotizada, como se entregasse toda a sua vida ao mesmo tempo, como quem pede, desprovido de orgulho, para ser cuidado. Entre os dedos fechados dele, sentindo o calor de sua palma áspera e seca, diz-lhe o nome, influência do gosto do pai pelos musicais dos anos 60.

— Tem mãos bonitas — elogia, ainda aparentemente encantada com a mão que envolvia a sua.

— De que me adiantam mãos bonitas se o toque nas cordas do banjo é rude, as pinceladas na tela são vulgares, o adestramento da caneta é ordinário?

— Estou diante de um artista, portanto.

— Estamos todos diante de artistas, todo o tempo — declara nebulosamente, a voz ressoante temperada com a boemia. — O que é a vida senão tela em branco, na qual espalhamos a aquarela dos nossos desejos? O que somos senão poetas à procura da rima para os sonetos de nossos anseios? Somos artistas, minha linda flor, somos sim.

Bebem até os olhos avermelharem-se, os corpos anestesiarem-se no torpor etílico, as palavras patinando nas línguas, espiralando nas risadas descomedidas que ecoavam nas paredes escuras do bar vazio. Ele paga os tantos chopes e vinhos com algumas notas amassadas e umas pratinhas pescadas do fundo do bolso e os dois ganham a calçada. Chove ainda. Ela estremece involuntariamente ao ventinho frequente que anunciava o iminente amanhecer, mas as mãos dele tocam-na nos ombros, feito um casaco, aquecendo-a do frio. Ajeita-se entre os braços dele, “minha casa é logo ali” num balbucio débil e caminham na chuvinha persistente a passos bambos entre as poças d’água que reluziam as lâmpadas dos postes. Escalam os oito lances de degraus, a chave gira na fechadura, as línguas giram na boca, a saliva mistura-se à chuva nos lábios flamejantes. Caem roupas encharcadas no chão, caem corpos na cama bagunçada sob a penumbra do último suspiro da madrugada, e ele irrompe na fragilidade macilenta dela, sua brutalidade animalesca atenuada por um zelo recém-adquirido. Sente-o, a massa corpórea firme que agora a cobre, procura as mãos dele na cama, “não, não são estas mãos”, um pânico lhe acomete enquanto ele se move dentro dela. Mãos erradas, depois daquelas serão sempre mãos erradas e ela sente os olhos explodirem em lágrima e desespero quando ele explode de prazer e volúpia.

Seca os olhos com fúria, vira-se para o lado, tapa o corpo nu com um cobertor. Ele não compreende. Tateia alguma peça de roupa, questiona em meio à confusão:

— Queres que eu vá embora?

— Não me importa — a rudeza a escorrer pelos lábios. — Mas se decidires ficar, faça-me um favor: mantenha tuas mãos longe de mim.

Ele termina de procurar suas roupas no escuro, abotoa a camisa branca e veste o paletó por cima. Para à porta, de onde a luz do corredor revela o corpo inerte dela na cama, feito um moribundo em seu leito de morte. Olha-a pela última vez antes de sair, os olhos castanhos enaltecidos de compaixão e, de mãos nos bolsos da calça, desce as muitas escadas a caminho do amanhecer chuvoso.

Vazio. O quartinho alugado no oitavo andar claustrofobicamente cheio de vazio.

 "Homage to Edward Hopper", Antonio Tamburro

sábado, 19 de novembro de 2011

músicas e divagações: "canções de apartamento", cícero.





faixa 1: tempo de pipa

"Vamos nos espalhar sem linhas
ver o mundo girar de cima
no tempo da preguiça."

 Já faz algum tempo desde o último “Músicas e Divagações” aqui no blog, que, pra quem não lembra, é apenas uma boa desculpa para ouvir música bacana e falar — reclamar? — da vida. E, sinceramente, tudo que estou precisando hoje é isso.

Mas para falar do Cícero, primeiramente eu tenho que falar (em linhas bem gerais, senão precisaria de todo o post) do meu bom amigo André Felipe — o Dé para os íntimos. Na verdade, a nossa amizade já nasceu nos frutíferos caminhos da música, quando o last.fm apontou-nos como vizinhos, devido ao nosso compatível gosto musical. Infelizmente, uma vizinhança virtual, e aquele café para falar da vida num fim de tarde, por ora, não pôde acontecer. Entretanto, isso nunca foi empecilho para a boa amizade que compartilhamos, que acabou criando laços que vão bem além do gosto musical, embora seja sempre muito bem entrelaçada com as notas ressoantes de nossas bandas favoritas. E foi numa dessas conversas em que ele tanto me ajuda a colocar a cabeça no lugar que ele disse: “Você já ouviu o Cícero? Você vai se identificar, ele fala de muitas coisas que você está sentindo agora.”

faixa 2: vagalumes cegos.

"Fica bem aí
Que essa luz comprida
Ficou tão bonita
Em você daqui"

Bom, isso foi há dois meses atrás. Eu juro que tento manter meus downloads em dia, ouvir as boas dicas que meus amigos me dão, os tantos discos que saem, mas não dou conta nessa vida corrida de auxiliar-de-escritório-estudante-de-letras-estagiário-blogueiro-nas-horas-vagas. Mas, quando finalmente baixei e as cordas do violão deram forma aos primeiros segundos de “Tempo de Pipa”, eu senti uma emoção diferente. Sério. E eu só pensava “Esse Dé me conhece mesmo.”

A verdade é que esse álbum do Cícero, gravado de forma independente e disponibilizado gratuitamente para download (vide link lá no fim do post) tem um ambiente, uma aura, uma essência — não sei exatamente qual dos três ou quem sabe os três juntos? — que, indubitavelmente, serve-me de espelho no momento pelo qual estou passando.

faixa 3: cecília e os balões.

"Pra começar a descobrir
o que é chegar e o que é partir
o coração só precisa de ar"

Vai além das letras, que são de poesia simples — e nada simplória —, de palavras sutilmente selecionadas, de universalização de sentimentos. Cícero narra com beleza e sem obviedade sensações simples, delicadas, aquelas pelas quais todos nós já passamos, mas que temos tanta dificuldade de expressar. Vai além da musicalidade também, embora as notas suaves, a voz doce de Cícero, as nuances, a atmosfera íntima e acolhedora do álbum sejam parecidas com as de outros músicos que ouço. Eu não sei exatamente o que foi que me emocionou de tal forma desde a primeira audição de “Canções de Apartamento”. Creio que ele tenha se encaixado perfeitamente como a trilha sonora de emoções que vinham se aflorando dentro de mim nesses últimos dias e, de certa forma que não consigo identificar com precisão, as canções ajudaram-me a atravessar esse período emocionalmente crítico.
faixa 4: joão e o pé-de-feijão

"Ainda não fazem pessoas de algodão
Ainda não fazem pessoas que enxuguem
suas próprias
mágoas"

Eu diria que este álbum tem muito do que vejo em minha essência, por assim dizer. Diria mais: se tivesse sido agraciado com algum talento musical ou com a capacidade de dominar as palavras, de adestrá-las — porque as palavras ainda me são feito feras ariscas e, possivelmente, sempre serão —, talvez o resultado de minhas andanças pelos caminhos artísticos beiraria algo muito próximo dessa sutileza do Cícero de falar dos sentimentos. Mas, como me falta o talento — tanto o musical quanto o linguístico —, resta um sentimentalismo um tanto exacerbado quando procuro expressar o que sinto em textos. Bom, é sorte que, ao menos, bom gosto e sensibilidade foram me dado para poder apreciar um belo disco como este.

         
 
faixa 5: ensaio sobre ela.


"Não se esqueça
por enquanto
de esquecer alguma coisa
pela casa
e vir buscar do nada"

“Canções de Apartamento” tem cara de dia chuvoso, daqueles em que você fica preguiçosamente esparramado na cama desarrumada, apreciando a chuva molhar o vidro da janela. É assim, sem pressa, sem clímax, sem urgência. É aquela tristeza com a qual você já se acostumou, que ficou ali, em algum cantinho do seu coração e às vezes cisma de doer novamente. Mesmo quando fala de rompimentos, assunto doloroso que pode virar circo de sentimentalismo, Cícero é calmo, dosado, certeiro. Nesta canção, por exemplo, é linda a forma como a gente consegue atribuir forma aos versos, se identificar com aquela sensação de perda que, inevitavelmente, volta a bater em horas menos esperadas, quando notamos, por exemplo, algo que a pessoa esqueceu em nossa casa — ou na nossa vida.

faixa 6: açúcar ou adoçante?

"Fica um pouco mais
Que tal mais um café
Ainda lembra disso?
Que bom."
E entre os versos sussurrados de Cícero, me pego refletindo sobre como meus sentimentos estão às avessas, desestruturados, completamente bagunçados dentro de mim. A ausência, no meu caso, não é serena, como canta o músico. Tenho explosões diárias de emoções, nem sei mais descrever as coisas que sinto. Se me perguntam se estou bem, não sei responder, essa é a verdade. Mas, no fundo, eu sinto que isso é bem normal, depois que você vive um período muito feliz e, logo em seguida, precisa enfrentar novamente os aspectos indesejáveis da sua vida. É como li esses dias em algum lugar: “tenho medo de ser feliz, porque felicidade nunca dura.”

faixa 7: eu não tenho um barco, disse a árvore.

"a gente sempre deixa de cuidar
do que já tem na mão"

Mas a minha identificação com este disco vai no extremo oposto: não é nas incertezas emocionais, nas oscilações pelas quais tenho passado que me vejo refletido, mas nessa melancolia tênue que passeia por todo o álbum. É no cinza que descolore as letras que me encontro.

faixa 8: laiá laiá


"Vamos dançar
qualquer coisa
é melhor
que tristeza
por favor
Se esqueça"

O Cícero fez um clipe lindão para divulgar esse álbum, para faixa “Tempo de Pipa” (minha favorita e, possivelmente, uma das minhas músicas brasileiras favoritas do ano). Gravado em plano-sequência, o bondinho de Santa Teresa e um melancólico Rio de Janeiro ao amanhecer servem de pano de fundo para o lindo clipe. Confere aqui:



9. pelo interfone.

"se tu soubesses o quanto machuca
não amaria mais ninguém."

E já que estamos falando de clipes, vale a pena também deixar a dica do site do meu amigo Dé, o Música Pavê, do qual sou fã de carteirinha (e juro que isso não é puxação de saco, rs). E um agradecimento especial a ele por tudo que já fez por mim nesse tempo que a gente se conhece. E, olha, não foi pouca barra que esse cara já me ajudou a passar, viu.

10. ponto cego.

"é sexta-feira, amor!"

E, finalizando, você pode baixar o álbum do Cícero na íntegra no link abaixo. Agradecer ao músico, porque disponibilizar um álbum lindo desses de graça é realmente um presente. E, coincidentemente, a sexta-feira acaba ao clima melancólico desses versos. “Canções de Apartamento” é uma boa companhia para dias assim, com certeza.

download: cicero.net.br
facebook: facebook.com/cancoes.de.apartamento



domingo, 16 de outubro de 2011

devaneios numa estrada em tarde chuvosa.


, talvez se eu conseguisse manter esta sensação, manter tudo desta forma dentro de mim. embora eu saiba perfeitamente do poder de oscilação do meu gênio e da peculiar instabilidade na qual me encontro atualmente. tudo bem, uma hora passa  {como gosto do efeito das gotinhas de chuva no vidro, o contraste com o cinza escuro, a melancolia. se pudessem, com alguma engenhoca qualquer, tirar uma foto da minha essência, das coisas que sou por dentro, acho que ficaria assim. o cinza é tudo que conheço. minha vida é uma tela vazia e, embora eu tenha tintas multicoloridas às mãos, aquarelas diversas, misturas, texturas e o caralho o quatro, no final, tudo que me resta, é o borrão cinza-melancólico da minha alma. minha alma, que merda estou dizendo? alma... [por que será que sou raso desse jeito? meus pensamentos, esse monte de porcarias vazias, simplórias... por que sou assim? eu queria ser profundo de alguma forma, saber falar de alguma coisa com propriedade, largar a mediocridade das mesmas palavras óbvias, da mesma pragmática imbecil. não sei não ser medíocre. deveriam ensinar isso na escola... não, peraí, eu acho que, na verdade, é pra isso que a escola serve. ah, foda-se.] ♪ triste é viver só de solidão, pena de quem nunca esteve aqui, pra ver, fazer dormir... a noite ♫ (okay random, tu vai mesmo ficar de zuação com a minha cara?) ... deus, como estou melancólico hoje. este ônibus cabe 50 pessoas, nem 1/3 das passagens foram vendidas e, mesmo assim, eu me sinto sufocado, claustrofóbico, como se minha melancolia ocupasse cada centímetro livre. tá sentindo daí? (ei, eu bem te pegava, sabia?) e daí a gente começa a subir a serra, entre a neblina, é como emergir de um taciturno mar cinza [oh deus, friburgo não friburgo não fribur (por que eu não peguei um outro ônibus qualquer na rodoviária e sumi no mundo? se eu pudesse, juntaria meia dúzia de roupas numa mochila, compraria uma passagem pra qualquer lugar e viveria conhecendo gente, lugares, vivendo sem rotina, roteiro, sem ter que sentar meu rabo na frente de um computador todo santo dia pra contabilizar dinheiro que não é meu — preciso terminar aquele balanço amanhã, não posso esquecer. — é estúpido gastar uma vida inteira pra fazer tudo que não te interessa. e mais estúpido ainda é perceber que sim, você pode entrar no cacete do ônibus e ir ver o mundo. o que te prende? o que me prende? nada. mas a gente se condiciona a essa obrigação de criar raízes indesejáveis e, quando vê, a vida foi embora dentro de um escritório e tudo que você conhece do mundo é o caminho casa-trabalho. isso é triste. eu não quero morrer sem ver o mundo. preciso fazer algo em relação a isso). (jens lekman, eu acho que eu te amo, cara. ♫ you in my arms.) ...go não friburgo não friburgo não] [e se esse ônibus virasse aqui? o que eu estaria realmente perdendo? é muito estranho essa falta de senso meu do valor da vida. quando penso em perder o que tenho, me preocupa muito mais a dor que isso causaria nos meus pais do que (aff, como eu odeio ultrapassagem) o que realmente estaria perdendo. afinal, eu não vou estar aqui depois para lamentar essa perda, não é mesmo? (deus, como pode ser tão simplório? é um desperdício você ser portador de um cérebro, raphael). a vida é meio superestimada. dane-se, é o que eu acho.] ..... alma. bem, que pode haver de mal em ser um pouco triste e cinza, não é mesmo? felicidade é coisa efêmera, a gente sente ela dissipar entre os dedos, frágil, imprestável. felicidade é enganação, ilusão, não se pode confiar em algo que não dura. por outro lado, se fôssemos apenas felizes, o que restava, né? quem foi que disse esses dias que se fôssemos felizes o tempo todo ficaríamos loucos? não lembro. mas é bem isso. sou feito de tristeza. preciso aprender a lidar com isso e aceitar isso dentro de mim. sempre vou vestir esse cinza celeste de dia londrino. não posso mais deixar meus olhos chamuscarem nas faíscas da felicidade. não.} já pensou que loucura seria se eu pegasse esse monte de pensamentos bestas e jogasse num texto escrito da forma que eu bem entender? lúcia me reprovaria, certeza....

sábado, 1 de outubro de 2011

vidas que se cruzam.



Histórias de amor não seguem scripts. Não há obviedade que possa ser encontrada nas formas que os corações tendem a se comportar, ou racionalidade nas linhas invisíveis que juntam, pouco a pouco, duas vidas que precisam se chocar e se tornar apenas uma. O amor simplesmente acontece, da forma que convier a ele mesmo, sem nos pedir permissão, sem se preocupar em nos surpreender de infinitas maneiras. Abro espaço neste blog, neste dia muito, muito especial, para contar uma pequena história sobre essas linhas invisíveis, paralelas num primeiro momento, até se tornarem o mais belo laço.

Eu sequer sei mais há quanto tempo o Gustavo está em minha vida: a contagem dos anos se perdeu entre as brincadeiras de ruas, os churrascos na casa dele, os anos de trabalho juntos, as conversas sempre carregadas de risadas, outras umedecidas de lágrimas. Mais do que uma amizade, fomos, gradualmente, criando laços de irmãos, que se alastraram por toda a família dele, que me acolheu como se realmente compartilhasse em minhas veias o sangue que corre nas dele.

Já a Mari caiu de pára-quedas em meu cotidiano num momento um tanto confuso e conturbado: estava em um momento de transição da minha própria vida quando nos conhecemos em vidas que apenas fingíamos que eram nossas. Formou-se um pequeno imbróglio amoroso que, à época, não podia livrá-la dele — por falta de coragem ou de maturidade ou coisa que o valha. Mas, neste ínterim desconexo, a vida dela cruzou com a do Gu pela primeira vez, talvez não da forma apropriada, mas, como disse, o amor tem seus próprios métodos de agir.

Só voltaríamos a nos reencontrar alguns anos depois, quando as entrelinhas puderam ser reveladas apropriadamente e, com lágrimas nos olhos, pelo frio contato do mensageiro, pedi desculpas a Mari por tudo que havia acontecido. Reatamos, lentamente, os laços de nossa amizade, agora sim da forma que sempre deveria ter sido. E, vindo passar o dia do meu aniversário do ano passado aqui, ela teve oportunidade de resolver outras pendências que também se encontravam em hiato.

Hoje, depois de quase um ano, todos esses encontros e desencontros parecem ínfimos com a chegada do Bernardo, nossa pequena espera ansiosa dos últimos nove meses. E vocês não sabem como me sinto feliz de poder ser padrinho dessa pequena preciosidade e o quanto de amor tenho guardado em mim para dividir com ele, para estar sempre presente em sua vida de todas as formas possíveis.

Mas, mais que tudo, esse pequeno texto é pra demonstrar o quanto me deixa orgulhoso ter sido a linha que fez a vida de vocês dois se cruzarem. Isso enche meu coração de felicidade, de verdade. Obrigado por me deixarem fazer parte dessa família. A jornada está só começando, e eu estarei aqui, sempre, com vocês.

Bem vindo ao mundo, Bernardo. Conte com seu dindo pro que for. Sempre.


domingo, 11 de setembro de 2011

batidas de coração.




Sentaram-se no extremo do píer, no chão amadeirado de tábuas toscas e firmes. Ela cruzou as pernas desconfortavelmente e, após ajeitar os cabelos lisos atrás das orelhas, puxou as mangas do moletom o suficiente para esconder as mãozinhas delicadas. Ele tentou acender um cigarro, lutando bravamente contra o ventinho manso que provinha preguiçosamente do mar; nem sabia ao certo se tinha vontade de fumar àquela hora da manhã, mas necessitava de algo com que poderia fingir distração. O céu era de um cinza imponente, cimentado, encontrando-se com o mar revoltoso que quebrava nas colunas do píer e salpicavam gotinhas geladas em seus rostos inexpressivos.

Ela já sabia. Notara indistintamente, pelo telefone, no tom de voz eufemístico com o qual lhe questionara sobre a possibilidade de um encontro dali a algumas horas: tinha na voz aquela ternura de um pai preocupado, que alerta ao filho para tomar cuidado enquanto brinca no balanço do parquinho. Agora, defronte ao rapaz, próxima o suficiente pra sentir seu cheiro, os olhinhos esverdeados e questionadores analisavam com minúcia as suas tentativas fracassadas de acender o cigarro. Os lábios curvaram-se num doce sorriso, que tanto tinha a ver com a fragilidade acentuada da menina, embora ele não notasse aquele momento efêmero, empenhado ininterruptamente na missão desimportante de fazer o isqueiro funcionar.

Temia quebrá-la. Do pouco que se dispusera a conhecer o coração da menina, o mais nítido e verdadeiro que alcançara era a inegável fragilidade de suas emoções pungentes, de suas declarações sutis e sinceras, da transparência aquosa de seus olhos rasos. Havia dias que, em silêncio, para si mesmo, desejava que ela não fosse tão vulnerável, ou que não pudesse ler nos gestos involuntários de suas mãos ou na expressão serena de seus olhos o quanto ela estava entregue a ele.

Um pequeno lampejo do isqueiro chamuscou a ponta do cigarro e ele deu um trago sem vontade. Não possuía mais álibi, precisou deixar seus olhos se cruzarem, desesperadamente procurando uns pelos outros, embora por motivos distintos. Ele umedeceu os lábios ressecados, o cigarro queimando entre seus dedos, as palavras queimando em sua língua.

— Eu não sei bem por onde começar. Nada disso está sendo fácil para mim.

Subitamente, ela inclinou o corpo na direção dele, alocando o ouvido junto ao seu peito. Desconcertou-se por um instante, pego inesperadamente por aquele movimento abrupto, mas, com a mão livre, deixou os dedos acariciarem os cabelos dela.

— O que você está fazendo? — perguntou baixinho, apoiando o queixo delicadamente no rosto dela.

— Estou ouvindo seu coração — um murmúrio coloriu o sorriso que ainda mantinha no rosto.

— Você entende o que está acontecendo aqui, não é?

— Sim, entendo. E tenho, portanto, duas opções: posso guardar para sempre o monte de palavras genéricas que você preparou e treinou obstinadamente nos últimos dias para me proteger de uma verdade irrevogável; — Ela suspirou, os olhos acortinados por lágrimas, o ouvido atentamente grudado ao peito dele. — ou posso lembrar-me de ti pela batidas do seu coração, pela melodia que delas provêm e que nenhum outro peito no mundo será capaz de repetir. Nunca. O que você prefere?

Os olhos dele nublaram-se. Os braços envolveram-na fortemente e, enquanto a melodia de seus corações e das ondas chocando-se contra o píer misturavam-se, contemplaram o silêncio obtuso da despedida.


domingo, 3 de julho de 2011

a última caminhada.

"A doce tarde morre. E tão mansa
Ela esmorece
Tão lentamente no céu de prece,
Que assim parece, toda repouso,
Como um suspiro, de extinto gozo
De uma forma profunda, longa esperança
Que, enfim cumprida, morre, descansa..."

(Felicidade, por Manuel Bandeira)

Arrastou-se para fora da cama com dificuldade proveniente do peso dos anos sobre suas costas. Os pés, descalços e frágeis, encostaram-se no chão de tacos iluminado pelo sol invernoso que adentrava pela janela, esparramando-se sobre os livros empilhados desorganizadamente. Moveu-se lenta e calmamente até a cômoda, na qual suas roupas provisoriamente mantinham-se guardadas desde que voltara à cidade, e vestiu sua camisa branca de seda favorita, abotoando-a distraidamente enquanto um assovio pacífico e melodioso era produzido pelos lábios ressecados. Passou com dificuldade as pernas fracas e magricelas para dentro de uma poída calça cáqui e a prendeu com suspensórios xadrez. Sentou-se na beira da cama, tateou o chão com as pequeninas mãos até encontrar o par de sapatos marrons, calçando-os. Arrastou-se de volta à cômoda, agachou-se com dificuldade e abriu a última gaveta, tirando dali um boné. Prostrou-se em frente ao espelho e, embora não se preocupasse mais com os cabelos desgrenhados ou com as marcas deixadas pela vida, escondeu os cabelos prateados com o boné, afundando as mãos nos bolsos da calça e se olhando no espelho por alguns segundos.


Batidas à porta e um rosto sorridente surge, surpreendendo-se com o que vê.

— Onde pensas que vai, tio? — a moça pergunta, adentrando o pequeno cômodo.

— Caminhar — responde com a voz pigarreada, ajeitando com a ponta dos dedos a branca barba que encobre o rosto macérrimo. — Vislumbraste o belo dia que faz lá fora? Entrou pela janela e me convidou a andar. Não pude recusar.

— E com que saúde pretendes sair por aí a passear? — a sobrinha era toda preocupação. — Já tomaste seus remédios? Temos que verificar sua pressão e...

— Deixe o velho em paz, mulher — o marido adentra o quarto, nas mãos uma caneca de café forte, que entrega ao senhor. — Que mal pode fazer uma caminhada nesse solzinho?

— Quer que eu te acompanhe, tio?

— Bah, não sejas boba. Sempre andei sozinho, seria um ultraje passar a andar com dama de companhia depois de velho — as mãos enrugadas levaram a caneca à boca, adoçando-a com o único vício que alimentara durante a vida toda. Bebericou com prazer todo o café e depositou a caneca vazia sobre a cômoda. — Já vou indo.

— Tome cuidado, tio, pelo amor de Deus.

Um sorriso doce coloriu o canto dos lábios. Beijou a sobrinha carinhosamente, pegou a bengala e partiu.

A tarde dominical queimava brandamente em luz invernal, pálido ouro, tênue calor. Os doces raios de sol acalentaram sua pele corroída pela erosão do tempo e se fez nostalgia, cercando-o por todos os lados. Apoiado na bengala, refez os passos do jovem frágil e desorientado, que não soube sonhar, nem obter todo o regozijo que a vida pode prover. Pisando sobre as próprias pegadas — que tentou por tantas vezes mostrar que eram decididas e obstinadas, quando não passavam de passos incertos e sem rumo —, era novamente o menino de boné, cujos olhos doces escondiam os receios espinhosos que lhe perturbavam. Como se fosse a vida eterno rodamoinho, estava de volta a andar nas ruas que impediram-lhe de sonhar, entre as construções medíocres que obstruíam sua visão para uma vida ampla e completa, entre as pessoas que emolduravam tão bem sua mente simplória e superficial. Podia ter sido tão mais, ele agora sabia. Agora, curvado e doente, apodrecido pelo efeito inexorável do passar dos anos.

Nem tudo era rancor, todavia, em seu coração enferrujado. Sabia que sua forma de sentir o mundo provinha, substancialmente, da sensibilidade gerada por aquelas longínquas caminhadas nas tardes solitárias de domingo. Tinha ciência de que, se agora podia emocionar-se ao olhar a forma como tudo é luz numa tarde invernal, devia tudo à forma como sozinho aprendera a ver a beleza na sutileza das coisas. E tudo era paz naquela tarde, quando a brisa balançou os galhos dos algodoeiros e, feito neve, pequenos tufos de algodão flutuaram no ar tenro, contrastando com o céu mais anilado de todos; tudo era paz quando as mãos cansadas acariciaram o focinho de um matreiro vira-lata que se engraçou para o velho e encurvado menino de boné, que sorriu como se ainda tivesse os dentes tortos e o sorriso infantil e ingênuo; era paz que assolava o coração quando meneava a cabeça para saudar os jovens cheios de vida que passavam por ele, mania local de uma falsa intimidade que lhe irritava quando jovem, mas que agora notara o quanto sentira falta no tempo que passara fora. Tudo, tudo era paz, enfim.

Avistou o banco à beira do rio, onde se sentava uma jovem e loira moça, de cabelos esvoaçando na brisa e de olhos azuis profundos na face alva e serena. Sentou-se ao lado dela, suspirando doidamente.

— Nunca me deixaste, não é mesmo? Mesmo depois de todos esses longos e demorados anos, ainda és a minha fiel companheira.

Olhava ao longe, ao horizonte pleno que desejava o sol ardentemente. As pálpebras finas e marcadas tremeram e os olhos castanhos, agora tão miúdos e sem vida, aguaram-se em oceano revoltoso e turbulento. Tirou o boné e depositou no banco, ao lado do corpo ínfimo, que recostou. Ela pôs a mão jovem e pálida sobre a dele, apertando docemente.

— Não chores, meu querido. Por favor, não chores.

— Lembro-me do quanto você era feia e assustadora num primeiro momento. Lembro do quanto a temia, de como queria que você fosse embora. — As lágrimas desbravavam a barba cerrada e caíam do queixo para o colo inerte, a voz era uma fininha estática quase inaudível. — E quanto mais desejava que fosses embora, mas vinhas à noite, e deitavas no meu travesseiro, abraçando-me, dizendo que nunca iria embora. Até que, por fim, meu coração acostumou-se, e te tornaste bela. Tornaste-te anjo que nunca me deixara andar sozinho, e veja aí o paradoxo. — Ele riu por entre as lágrimas copiosas, vendo a ironia de tudo aquilo. A mão dela ainda apoiada sobre a sua.

— Deixar-te-ei hoje, meu querido.

— Sim, eu sei. Choro não por tristeza, mas por tão linda a paz que me me serve de invólucro neste momento. O que teria sido de mim se não tivesse me acompanhado todo esse tempo?

Ela sorriu angelicalmente. Tomou-lhe a mão enrugada e beijou-a com os lábios levemente umedecidos. A brisa ainda bailava seus aloirados cachos quando ela se afastou a passos decididos, sem olhar por cima dos ombros.

O sol brilhava por entre as árvores, pássaros faziam voos acrobáticos no céu anil e o inverno chiava melodicamente no ventinho que soprava do oeste. Tudo, tudo era paz, enfim.

domingo, 15 de maio de 2011

catarse de sábado à noite.

Eu tinha uma festa para ir ontem à noite. Já havia marcado com Jojô há muito tempo atrás e estava até animado durante a semana. Mas festas satisfazem o corpo. E tudo indicava que não era meu corpo que necessitava de cuidados ontem. Troquei, portanto, os embalos de sábado à noite por edredons e duas obras cinematográficas que satisfizeram as aflições catárticas da minha alma.

O primeiro filme em cartaz da noite foi Reencontrando a Felicidade (Rabbit Hole no original, filme de 2011), um relato emocionado de um casal — lindamente interpretado por Nicole Kidman e Aaron Eckhart — que perdera o filhinho de quatro anos e, desde então, encontra dificuldades para seguir em frente com a vida.

A história desenrola-se depois de oito meses da morte fatídica do menino, o que é crucial para a atmosfera e o enfoque do filme. Não há cenas melodramáticas, apelo para choros exagerados ou diálogos fúteis. Os personagens encontram-se numa fase mais madura e dolorosa da morte, questionam a posição de Deus diante de tudo isso, enfrentam a parte mais difícil que é deixar para trás as lembranças e reencontrar o amor que tinham um pelo outro. A dor dos pais consternados, o relacionamento da mãe com o menino que causara o acidente que matou seu filho, os conflitos familiares, tudo ganha uma abordagem sutil, o que aprofunda a emoção que o filme nos causa. Ao afastar-se de um dramalhão, o filme aproxima-se de uma realidade que nos faz doer sinceramente. O baque foi tão imenso que eu ainda chorava copiosamente quando os créditos terminaram de subir.

Tomando fôlego, deixei o cinema norte-americano para assistir uma produção colombiano-peruana chamada Contracorrente (Contracorriente, 2009), bela surpresa ensolarada, lindo relato singelo de amor. Miguel, um simples pescador de um vilarejo peruano, mantém um caso com o pintor Santiago, embora seja casado e seu primeiro filho esteja pra nascer nos próximos dias. O pintor deseja viver junto com Miguel, mas falta coragem para o pescador de enfrentar a sociedade e os costumes do vilarejo. Santiago acaba morrendo num acidente de barco e sua alma fica presa a Miguel, sendo o único que pode vê-lo. É então que os dois vivem a plenitude do amor, embora Miguel precise encontrar o corpo do amado para promover os rituais de passagens e deixar Santiago descansar.

Embora tenha o tema da morte como mote principal também, Contracorrente mostra um lado diferente do fim da vida, guiado principalmente pelas crenças do pequeno vilarejo de pescadores, que acredita que o corpo precisa ser ofertado ao mar para a alma poder descansar. O amadurecimento de Miguel durante esse período, a sua aceitação, sua mudança de postura são mostrados de forma muito sincera, apoiados na ótima atuação de Cristian Mercado. O filme às vezes ganha atitudes acaloradas, um tanto dramáticas, mas nada que tire o equilíbrio de um ótimo roteiro E, acima de tudo, a história de amor dos dois é absolutamente apaixonante.

Eu tenho andado morto por dentro. Preso num vácuo emocional onde não sinto nada, não me emociono com nada que aconteça na minha vida. E cheguei ao ponto assustador de necessitar de filmes, como esses dois, para fazer minha alma sentir alguma coisa novamente. O efeito é devastador. Confesso que estou assustado com essa sensação e espero que tudo isso fique para trás logo. Preciso, urgentemente de qualquer coisa que faça eu me sentir vivo novamente.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

espera.

Esperei.

Esperei como quem crê, como quem faz por merecer, como quem vive pela promessa de que um dia virá. Às vezes, esperei de forma branda, calma, serena; sem olhar para os lados, sem procurar cegamente por qualquer sinal. Outras horas, fui com sede, afoito por cessar a espera. Afoguei-me em tantas expectativas frustradas, em tantos mares tempestuosos de decepções, bebi toda a água salgada e dolorosa do fracasso.

Da espera, colori-te com as cores que me convinham. Sua imagem sem rosto e, ao mesmo tempo, com todas as faces que te dei, feito uma folha branca onde delineei os traços rígidos e rústicos do seu maxilar, os lampejos do lápis desenhando os pelos desgrenhados da sua barba, os rabiscos dando vida aos seus olhos escuros. Esperei, desde então, seu rosto, anonimamente tão íntimo meu, desconhecido, misterioso. Fiz da espera certa, quando seus métodos eram oblíquos e tortuosos, fiz de você meu único, embora você fosse qualquer um.

A espera, contudo, transformou-se em fardo pesado, coisa difícil de sustentar. Metamorfoseou-se em bigorna de desenho animado, amarrada na canela fina, sugando para um abismo sem fim. Buscava explicações para tanta espera e deparei-me com um espelho emoldurado em ouro, refletindo intimamente o ordinário e simplório eu. Vi a mediocridade brilhando à luz do sol outonal, ofuscando minhas pupilas cansadas e entendi: se sequer eu conseguia amar a coisa simplória em que se constituía meu eu, como podia pedir a outra pessoa que aceitasse tal infeliz tarefa?

Da espera, fez-se paz de, talvez, não ser apto e merecedor de receber tal sentimento. Afinal, por que seria o amor, coisa rara, pertinente a qualquer ser humano que encha os pulmões de ar? Não seria o amor precioso e dado como dádiva a poucos que, venturosos, deveriam sentir-se abençoados com a capacidade de amar e, principalmente, de receber amor?

Tenho esperado. Ora aparentemente em vão, ora com a ínfima esperança de ser um desses merecedores, ganhadores de loteria. Tenho esperado.

domingo, 3 de abril de 2011

1. david, the radio dept.




2:43. Choca-se com minha face pálida uma brisa outonal que tinge minhas bochechas de um tom rosado doentio. Faz frio na sacada encoberta do nosso apartamento e, movendo circularmente a taça onde ainda resta um tantinho do cabernet, contemplo a bebida trepidar graças aos arrepios cálidos que percorrem minha espinha e causam tremores em minhas mãos congeladas. Não tenho mais noção de há quanto tempo estou aqui, sentado nesta sacada imbecil, as pernas movendo-se feito pêndulos sobre a penumbra que embrulha a cidade. Ainda 2:43. O relógio não se move. Acho que estou levemente embriagado pelo vinho e olhar lá para baixo não parece uma boa ideia. Vertigens. Um movimento brusco do meu braço esquerdo e a garrafa de vinho quase vazia flutua como uma sacola plástica em direção à calçada deserta. Espatifa-se em bilhões de cacos, mancha a calçada com o sangue amargo que restava no fundo. Seus faróis abrem caminho no breu silencioso. Ele para o carro rente à calçada, desce e seus pés pisoteiam os estilhaços do que outrora fora inteiro. Sangram as solas do seu tênis, molham-se da tinta bebida. Ele inclina a cabeça e me vê. Pequeno desconcerto otimista meu, não pode ou não me quer ver há tempo. Sou um borrão desarranjado para ele, nada além disso.


Ele sobe as escadas e vem ao meu encontro na varanda. Em silêncio, apóia na sacada uma garrafa de vinho nova, lacrada. Seus braços envolvem-me na cintura com força, seu lábio flamejante incendeia meu pescoço e há um choque de temperaturas dentro do meu corpo.

— O que faz aí? — ele sussura no meu ouvido, seus dedos grossos tocando-me por baixo da camiseta. — Matar-se-ia de saudade de mim, é isso?

Apóio a taça na sacada, curvo um pouco a cabeça para trás, roço minha barba levemente na dele.

— Cheira a outros homens. Impregnado em você, feito lepra. Vá se lavar.

O sorriso é debochado, os dentes reluzem à lua. Unhas encravam-se em meu abdome, a língua desliza em minha pele macia, molham-na, cobrem-na da saliva imunda. Morde-me ferozmente os lábios, puxa-me da sacada e lança-me ao chão frio da varanda. Não posso despedaçar-me feito a garrafa. Não se quebra o que já está quebrado, destruído, em frangalhos. Lágrimas queimam minha pupila acastanhada, embaçam-me a visão como um pára-brisa à chuva torrencial de março. Lança o corpo sobre o meu, o peso de um caminhão a comprimir meu peito. O peso da culpa, da consternação, da passividade.

— Oh David, não vás olhar-me nos olhos?

— O que temos aqui? O que é isso que vivemos? Explica-me o porquê desta dependência que não me deixa cuspir-te na cara, como mereces.

Ele lambe o sangue que tinge gentilmente o corte em meu lábio feito por sua mordida. Fricciona os lábios como que me saboreando, a ferrugem a espalhar-se em seu paladar. Os enormes olhos amendoados sobre mim com a opacidade já inerente. Desabotoa a calça jeans e sorri voluptuosamente.

— Não se explica o amor, David. Não, não se explica.

_

A claridade leitosa que explode pelo teto de vidro é um enorme lençol branco sobre nossos corpos nus e inertes. Movo imperceptivelmente a face em sua direção para poder apreciá-lo. Gosto quando dorme. Do seu peito inflando e desinflando e de ver a vida a entrar e sair por suas narinas. Agrada-me com infantilidade o movimento involuntário de suas pálpebras fechadas, que tremelicam como se fosse acordar, embora nunca acordasse. Ainda sonhava, coloria-se das cores pungentes dos sonhos que outrora me contava com sua narrativa impressionada e envolvente. Mas gosto ainda mais de vê-lo dormir porque, nestas horas, vejo o homem que amo. Apenas quando a ingenuidade pode voltar aos traços firmes do seu rosto, disfarçada de sono, quando abraçado ao travesseiro e vivendo num mundo particular, sei que não pode mentir para mim ou me machucar. Toco-lhe os cabelos negros, o peito intumescido, os lábios firmes e grossos e amo-lhe, oh deus, como lhe amo quando dorme. Choro de tanto amor por um homem que só existe dormindo. Fico, não me vou embora e deixo toda uma vida destruída pra trás pelo simples prazer de vê-lo a dormir. Durma, meu homem, durma que esta é a única hora em que ainda te reconheço.

Visto uma cueca e deslizo entre os lençóis brancos até a cozinha do loft para preparar o café. A luz transborda pelos poros da casa, tudo é alvo e embaçado, tudo é subjetivo e irreal. Ele parece-me lindo visto por entre os lençóis de luz. Alcanço a Nikon e guardo sua serenidade em pedaços de papel. Fotografo a paz sublinhada nos traços do rosto bruto, a masculinidade esculpida nos ombros, a imponência do posicionamento das pernas entreabertas ocupando quase toda a cama. Dilatam-se as pupilas e, após um instante de reconhecimento, sorri-me com a pureza que ainda traz do mundo particular dos sonhos.

— Não está a fotografar-me durante o sono novamente, está, príncipe?

E eu apenas sento-me em uma cadeira, com a câmera apoiada no colo, e sorrio-lhe de volta, com os olhos ensopados.

— Parece um anjo envolto de toda essa luz. Não quis desperdiçar tal fotogenia.

Sirvo duas xícaras de café e trago-lhe uma à cama. Seu corpo envolve-me e ele encosta sensivelmente a barba em minha nuca. As canecas esvoaçam o vapor da bebida quente, o aroma aglomera-se nos lençóis de luz e a manhã de domingo brilha em sua palidez onírica.

— Encontrei a resposta para as perguntas de ontem.

— Conte-me — disse ele, abraçando-me com carinho e bebericando o café.

— Gosto de te ver dormir, Michael.

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david
the radio dept.
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