quinta-feira, 31 de julho de 2008

reunião de pauta

a sala escura e esfumaçada encontra-se mergulhada num silêncio religioso enquanto esperamos o diretor chegar para a reunião ter início. na comprida mesa de madeira que estica-se preguiçosamente pela sala, cinzeiros cheios de cigarros amassados queimando suas últimas cinzas, copos com cafés frios e papéis espalhados aleatóriamente. os três roteiristas, debruçados sobre a mesa, não se encaram e não trocam sequer uma palavra, talvez preparando-se psicologicamente para o que viria a seguir. eu, sentado numa cadeira nos fundos da sala, mergulhado na escuridão cômoda da sala, analiso as expressões em seu rosto apenas por não ter nada melhor para fazer.

o diretor abre a porta e encaminha-se para o se lugar de praxe, na cabeceira da mesa, enquanto os roteiristas se recompõem, sentando-se eretos. articulam a boca na esperança de um "boa noite", mas ele não vem. o diretor tem todos os músculos faciais duros feito rocha. algo tinha realmente o chateado. seu olhar encontra o meu no fundo da sala e eu manuseio a cabeça num comprimento. sua voz soa imponente como um trovão, como sempre acontecia.

- você não precisa estar aqui, raphael. não o convoquei para essa reunião.

encolhi os ombros.

- não tenho nada melhor para fazer mesmo.

ele assentiu com a cabeça, permitindo assim, que eu continuasse na reunião. voltou então seus olhos para os três roteiristas à sua frente, entrelaçou os dedos e apoiou os cotovelos sobre a mesa. umedeceu os lábios com a ponta da língua e deixou sua voz fluir e alcançar cada centímetro da sala. ninguém atreveu-se a respirar enquanto ele falava.

- deus sabe o quanto eu estou tentando fazer um coisa bacana com esse filme, o quanto eu estou me esforçando e o quanto eu quero olhar pra trás daqui há alguns anos e ver que fizemos algo que realmente valeu a pena. mas meus planos estão indo por água abaixo com essa porcaria que vocês andam escrevendo. desculpe-me a sinceridade - ele acrecentou rapidamente -, mas eu não estou a fim de dirigir uma merda dessas.

o diretor fez uma pausa, na esperança de que algum dos 3 se defendesse, mas mantiveram-se num silêncio absoluto e submisso.

- chega desse tal cara italiano de uma vez por todas. eu estou de saco cheio dessas cenas idiotas que vocês têm escrito que não acrescentam nada à trama. vocês estão batendo nessa mesma tecla a mais de 8 meses, cacete!

- ele traz um charme às cenas... - a roteirista loira de feições esticadas arriscou, mas ao receber um olhar massacrante do diretor, engoliu em seco e calou-se.

- que ele leve seu charme pro quinto dos infernos, porque no meu filme CHEGA! liguem para aquele ator do carnaval, arranjem um figurante, façam o que vocês quiserem, mas dêem um jeito nisso.

- achei que você tinha dito que o cara do carnaval estava fora de cogitação - o outro roteirista de boné afundado até a altura dos olhos relembrou com tom de desafio, enquanto os outros dois balançaram a cabeça, concordando.

- eu estou aceitando qualquer coisa para salvar essa droga de filme, até mesmo resgatar personagens daquele naipe. mas eu preciso trabalhar com algo concreto e não com uma obsessão fantasiosa e estúpida. - o diretor levantou-se e, ao dirigir-se à porta da sala, lançou suas últimas palavras: - novo roteiro na minha mesa até segunda-feira. qualquer citação sobre o cara italiano, demissão por justa causa. tenham uma boa noite.

- heil, hitler! - debochou o terceiro roteirista quando o diretor se retirou, exatamente aquele que cuidava da veia cômica do filme, das sacadas inteligentes e das tiradas ágeis. - o cara é o maior ditador.

os 3 começaram a confabular sobre que rumo tomar nos próximos roteiros e já mexiam em seus bolsos atrás de seus celulares para contatar novos atores. eu me mantive estático na cadeira, mirando o nada com meus olhos congelados. a voz do diretor ainda ressoava em meu ouvido como um eco: "chega desse tal cara italiano de uma vez por todas". engoli em seco e sai da sala a passos largos.

eu precisava dos meus últimos 9 segundos.

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